Afinal, que percentagem da população precisa de ficar infetada para se alcançar a tão desejada imunidade coletiva, garantindo a redução ou o desaparecimento da transmissão do novo coronavírus?
A pergunta não tem, por enquanto, uma resposta definitiva. Seja por via do número de infetados ou pela vacinação, os modelos tradicionais estimam que uma doença pode ser prevenida quando pelo menos 70% da população de um país possua anticorpos. É uma percentagem muito alta. A ser assim, em relação à covid-19, e como sublinhou esta terça-feira a Organização Mundial da Saúde, no momento atual não há como alimentar otimismos: menos de 10% da população global possui anticorpos.
Há, no entanto, cientistas a colocar a fasquia mais baixa, por acreditarem que pode haver um efeito protetor se pelo menos metade das pessoas estiver imune. Na prática, se nenhum país atingiu ainda valores que afastem a possibilidade de uma segunda vaga, o que os modelos estatísticos destes especialistas sugerem é que haverá determinadas zonas mais defendidas.
Vários investigadores ouvidos pelo “The New York Times” (NYT) são dessa opinião, citando como exemplos alguns dos bairros mais castigados pelo vírus em Nova Iorque, Londres ou Bombaim. “Estou tentado a acreditar que há bolsas nas cidades de Nova Iorque e Londres que têm imunidade substancial”, disse ao NYT o epidemiologista Bill Hanage, da Escola de Saúde Pública de Harvard.
Fruto de uma investigação aleatória, cientistas em Bombaim foram encaminhados para uma conclusão semelhante. Depois de recolherem e analisarem as amostras de sangue obtidas a cada quarta porta a que bateram (na quinta, se ninguém abrisse na anterior), os resultados obtidos revelaram uma grande disparidade. Se nos bairros mais pobres da cidade entre 51% e 58% dos residentes tinham anticorpos; nos mais ricos essa percentagem ficou entre os 11% e os 17%.
Jayanthi Shastri, do Hospital Kasturba, que liderou a investigação, explicou: as menores condições, implicando fatores como a partilha de casas de banho e a dificuldade de acesso a máscaras, “contribuíram para uma disseminação silenciosa da infeção”. A conclusão que Shastri aponta é que nestes lugares mais pobres as suas comunidades estarão agora mais próximas da imunidade.
O problema dos cálculos mais tradicionais, na opinião dos que os não seguem, é, por exemplo, considerarem que todos os indivíduos têm a mesma suscetibilidade ou igual grau de exposição ao vírus, “o que não acontece na vida real”, como afirmou Saad Omer, diretor do Instituto para Saúde Pública de Yale. “A imunidade de rebanho pode variar de grupo para grupo e de subpopulação para subpopulação.”
Imunidade coletiva com taxas abaixo de 20%?
Maior controvérsia estão a gerar os investigadores cujos modelos os levaram a afirmações ainda mais radicais, sugerindo que a imunidade coletiva pode ser alcançada com taxas de imunidade tão baixas como 10% ou 20%, o que significaria que países inteiros já a podem ter alcançado.
Um desses modelos foi apresentado pela investigadora portuguesa Gabriela Gomes, da Universidade de Strathclyde, no Reino Unido, tendo por base dados da Bélgica, Inglaterra, Portugal e Espanha. A matemática estranha até a polémica em torno do que defende. Fala de uma espécie de “seleção natural”. “Numa população suscetível, uns são mais suscetíveis que os outros. O vírus não afeta as pessoas aleatoriamente. Vai infetar primeiro os mais suscetíveis, então eles desenvolvem alguma imunidade, portanto saem do grupo dos suscetíveis”, explica. “Os que sobram são aqueles que no início tinham menos suscetibilidade. Há uma redução da suscetibilidade média. Ela é dinâmica. À medida que a epidemia se desenvolve, essa suscetibilidade média vai diminuindo, vai desacelerando o crescimento de casos, vai fazer a epidemia menor. O limiar de imunidade coletiva portanto também vai ser menor”, conclui.
A posição mais conciliatória é a de que os novos modelos devem ser considerados mas não devem ser usados para a definição de políticas contra a pandemia. Com o número de casos novamente a subir em muitos países, o que é real é o facto de “ainda não podermos voltar ao normal no nosso comportamento diário”, frisou Virginia Pitzer, epidemiologista matemática da Escola de Saúde Pública de Yale: “Pensar que podemos simplesmente parar de cumprir as regras de segurança e não ver um aumento de casos é um erro”.