Coronavírus

29 dias, 696 horas e mais de 41 mil minutos: tudo o que aconteceu no lar onde morreram 18 pessoas em Reguengos

A 17 de junho uma funcionária é confirmada como infetada pelo novo coronavírus. Quase um mês depois, de acordo com o relatório da comissão de inquérito da Ordem dos Médicos, contavam-se 17 mortos (houve um 18º mais tarde), dezenas de infetados e demasiados problemas na atuação das autoridades de saúde e “graves” falhas nas condições de segurança. Esta é a cronologia do que aconteceu em Reguengos de Monsaraz desde o primeiro dia

NUNO VEIGA

Logo no dia em que foram chamados ao lar da Fundação Maria Inácia Vogado Perdigão Silva, em Reguengos de Monsaraz, os médicos não conseguiram concluir a recolha de amostras para fazer o teste à covid-19. Era cerca de uma centena de pessoas e as condições de que dispunham eram “más” e impossibilitaram a conclusão da tarefa. Foram precisos três dias para terminar a testagem, refere o relatório da comissão de inquérito levada a cabo pela Ordem dos Médicos ao surto. Durante todo esse tempo os utentes partilharam os mesmos espaços e não usaram máscara. A 16 de julho, um mês após ter sido confirmado o primeiro caso positivo de infeção, a Ordem dos Médicos visitou o local. Morreram 18 pessoas.

CRONOLOGIA - segundo relatório da Ordem dos Médicos

17 DE JUNHO

. Primeiro caso diagnosticado. Trata-se de uma funcionária do lar, que fica internada.

18 DE JUNHO

. Autoridade de Saúde Pública é notificada do caso.
. O caso é noticiado.
. Começam os rastreios. Médicos não conseguem terminar devido à falta de condições.

19 DE JUNHO

. Continua o rastreio.
. 50 utentes têm resultado positivo.
. Os médicos identificam 11 utentes com um estado de saúde grave e enviam-nos para o hospital. Só três ficaram internados.

20 DE JUNHO

. Ainda não são conhecidos os resultados dos rastreios.
. Utentes permanecem misturados: circulam pelos mesmos corredores e áreas comuns, partilham casas de banho, não usam máscara.
. Os casos já confirmados como positivos são isolados dos restantes utentes. “Alguns doentes que não constam ainda da lista de infetados encontram-se misturados com doentes positivos confirmados nos mesmos quartos”, refere relatório.

21 DE JUNHO

. Médicos de medicina geral e familiar fazem testes.
. Os mesmos médicos enviam email à Autoridade de Saúde Pública e ao Agrupamento de Centros de Saúde (ACES) e reportam “as péssimas condições”.
. Forças Armadas faz a avaliação inicial in loco da situação.

23 DE JUNHO

. Segurança Social visita lar.
. Equipa de médicos e enfermeiros regressa ao lar para fazer novamente testes de rastreio aos utentes e funcionários que tinham anteriormente testado negativo - não foi possível fazer a todas as pessoas.
. Funcionários usam máscara, mas utentes não.
. Pessoal médico descreve: “Quartos de 4 ou 5 camas, numa parte do edifício antigo, degradado, com calor extremo, cheiro horrível, lixo no chão, vestígios de urina seca no pavimento. Os doentes estão deitados em camas quase lado a lado, sem espaço para nos movimentarmos. Vemos doentes acamados, desidratados, desnutridos, alguns com escaras com pensos repassados, alguns só usando uma fralda, completamente desorientados”.

24 DE JUNHO

. Primeira morte. Há mais de 70 infetados.
. Os oito utentes que testaram negativo são transferidos para outra instituição.
. Médicos voltam alertar para a falta de condições e, após vários pedidos, reúnem-se com a direção do Agrupamento de Centros de Saúde (ACES) do Alentejo Central, a Autoridade de Saúde Pública.
. Presidente da Administração Regional da Saúde, José Robalo, ameaça médicos: têm de manter “a prestação de cuidados no Lar porque caso contrário incorreriam em processo disciplinar”.
. Não existem frascos de gel de desinfeção das mãos nos quartos ou nos corredores.
. Vários doentes referem que há vários dias que não lhes é administrada a medicação habitual.

25 DE JUNHO

. Segunda morte.
. Em reunião, a ACES reconhece a falta de condições de segurança.

26 DE JUNHO

. Após reunião presencial com a direção do lar e representantes das autoridades de saúde regionais, são desenhados os circuitos: utentes infetados são transferidos para o primeiro andar e o rés do chão passa a ser “zona limpa”.
. Maioria dos doentes está clinicamente estável, alguns acamados.
. Não havia controlo da medicação prescrita ou administrada.

27 DE JUNHO

. Terceira morte.
. É pedida a visita do presidente da Autoridade Regional de Saúde, que envia em sua representação outra pessoa.
. “Alguns” doentes são transferidos para o hospital “por agravamento do estado clínico”.

28 DE JUNHO

. Estado de saúde dos utentes agrava-se. Muitos pacientes mostram sinais de desidratação, desnutrição e disfunção renal.

29 DE JUNHO

. Morrem três pessoas, são agora seis as vítimas mortais.
. “Sistematicamente” as equipas médicas voltam a avisar as autoridades de que não têm condições para “tratar os doentes de acordo com as boas práticas clínicas”.
. Uma das vítimas mortais é a funcionária considerada doente zero do surto de Reguengos de Monsaraz.

02 DE JULHO

. Mais duas mortes, são agora oito as vítimas mortais.
. Ativado o Plano Municipal de Emergência.
. É anunciada a transferência dos utentes para o Pavilhão Multiusos de Reguengos de Monsaraz.

03 DE JULHO

. Os cerca de 60 utentes que ainda permanecem infetados são transferidos.
. Médicos hospitalares deixam de prestar apoio presencial.
. Há 17 pessoas internadas no Hospital Espírito Santo de Évora, seis na unidade de cuidados intensivos.

04 e 05 DE JULHO

. Morrem quatro pessoas. Número de vítimas mortais é agora de 12.
. Uma das mortes ocorre na comunidade, num homem de 52 anos.
. Há 20 pessoas internadas.

06 DE JULHO

. No pavilhão, os doentes estão em “enfermarias” separadas por pladur, cada uma delas com seis a oito camas. A distância é adequada.

07 DE JULHO

. Morrem mais duas pessoas, são agora 14 no total.

08 DE JULHO

. Morre mais uma pessoa, é a 15ª morte.
. O estado de saúde de um doente agrava-se e precisa de ser transferido para o hospital. “Os bombeiros demoraram duas horas e meia a chegar.”
. Hospital Espírito Santo de Évora reativa uma enfermaria para doentes com covid-19 para “dar resposta” ao “aumento de pressão” no internamento provocado pelo surto em Reguengos de Monsaraz.

09 DE JULHO

. Mais uma morte, são agora 16 as vítimas mortais.
. Ministério Público anuncia que está a investigar.
. Os doentes estão mais estáveis.
. Saúde Pública é contactada pela primeira vez para marcar os testes de cura aos utentes que ainda não o tinham feito.

10 DE JULHO

. Médicos verificam que em várias ocasiões houve medicação que não foi administrada a múltiplos doentes.

11 DE JULHO

. Utentes têm pela primeira vez acesso a um espaço exterior.

15 DE JULHO

. Número de vítimas mortais chega às 17.

16 DE JULHO

. Comissão de Inquérito da Ordem dos médicos visita pavilhão.
. O secretário de Estado da Saúde, o secretário de Estado Adjunto e da Defesa Nacional, Jorge Seguro Sanches, o presidente da Câmara Municipal de Reguengos de Monsaraz, a diretora-geral da Saúde, a direção da Administração regional da Saúde, a diretora do hospital de Évora, os delegados de saúde regional e local e ainda o coordenador regional do Alentejo no combate à covid-19 reuniram-se.

NOTA: A 18ª VÍTIMA MORTAL NÃO APARECE NO RELATÓRIO PORQUE MORREU DEPOIS DE 16 DE JULHO