A pandemia questionou quase tudo. A resistência da carcaça humana, a segurança, o acesso a bens essenciais e medicamentos, as relações pessoais, o trabalho à distância, a ciência e o que sabemos dela, a razão das investidas dos animais selvagens na urbe e até a pedalada da Internet, testada sem piedade com o confinamento de milhões de pessoas. Mas não só: as cidades estão a tentar responder aos novos tempos, encaixando e compreendo as novas exigências. Estão a ser repensadas, estão a mudar.
A reboque do confinamento rigoroso em resposta à pandemia, que matou pelo menos 152 pessoas e semeou o vírus por quase 2.800 gregos, Atenas anunciou esta terça-feira que aproveitou para dar gás às obras públicas que vão privilegiar o espaço urbano, conta o “The Guardian”. O projeto, que estará concluído até ao final de 2022, prevê a construção de uma espécie de passadeira, ou uma espécie de ciclovia para peões, para caminhadas ao longo de 6.8 quilómetros, conectando assim os lugares arqueológicos e míticos daquela cidade. Mais: os carros serão banidos à volta da Acrópole e os pavimentos e passeios vão engordar nas avenidas mais importantes, possibilitando assim o distanciamento social.
“Temos esta oportunidade única e estamos a acelerar os nossos trabalhos públicos”, admitiu àquele diário britânico o presidente da Câmara Municipal, Kostas Bakoyannis. “Milão, Paris, Berlim, Nova Iorque, Cidade do México, estão todos a dar prioridade às caminhadas e às bicicletas e estão a criar espaços públicos regulando o trânsito, e é isso que queremos fazer aqui também.” A ideia passa por eliminar os carros desses espaços urbanos e “entregá-los às pessoas que querem caminhar e desfrutar da cidade”.
Numa espécie de inversão da história, Lisboa previa antes da pandemia algumas medidas que estão agora a ser implementadas pelo mundo fora. Passeios mais amplos, mais ciclovias e menos faixas de rodagem e estacionamento são alguns exemplos. A capital portuguesa passaria a ter ruas apenas pedonais e outras estradas teriam trânsito condicionado. A baixa lisboeta teria um novo rosto a partir de junho.
Agora, com a precipitação de uma nova realidade, algumas medidas verdes podem ser antecipadas. Isso é algo que é defendido pela Associação Oficina da Ciclomobilidade, que enviou uma carta à autarquia no início de abril, conta este artigo da "Time Out". Entre outras coisas, aquela associação pedia "que o plano de expansão da rede ciclável, que deverá atingir os 200 quilómetros em 2021, seja posto em prática imediatamente, através de ciclovias instantâneas". Reduzir a pressão nos transportes públicos é um dos objetivos.
Também a Associação pela Mobilidade Urbana em Bicicleta publicou no seu site algumas recomendações para Lisboa. "Esta crise é o momento de colocarmos questões com uma profundidade que a mesma merece", pode ler-se naquele texto da MUBi. "O que durante décadas fizemos errado e não queremos continuar a fazer? Como podemos aproveitar esta crise para tomar decisões transformativas e começar a fazer aquilo que a saúde pública e a sustentabilidade dos lisboetas e do planeta exigem de nós?"
A associação sugeria, em meados de abril, "a implementação de infraestruturas temporárias de emergência (corredores sanitários) por forma a garantir maior segurança a quem opte pelos modos ativos de deslocação, como criação de ciclovias, alargamento de passeios, encerramento de ruas ou vias de circulação ao tráfego automóvel, seguindo os exemplos do que muitas cidades do mundo tem vindo a fazer neste período de crise. (...) Não só estaremos a garantir o distanciamento de segurança a quem se desloca a pé ou em bicicleta, pelo aumento de espaço de circulação disponível, como estaremos também a promover a redução do risco rodoviário para estes e todos os utilizadores do espaço público.
O que está a acontecer pelo mundo fora?
Milão, o coração da região mais castigada pela covid-19 na Europa, a Lombardia, traçou há poucas semanas um plano ambicioso que visa roubar protagonismo aos veículos a motor. A poluição, tida como um factor importante no agravamento de casos da doença, tem diminuído, convidando a um debate obrigatório. Aquela cidade deverá, durante o verão, ver a transformação das estradas como as conhecemos, aumentando as ciclovias e os espaços para peões, escreveu o “The Guardian” em meados de abril.
“Trabalhámos durante anos para reduzir o recurso aos carros”, contou ao diário inglês o número 2 da autarquia milanesa. “Se todos conduzem um carro, não há espaço para as pessoas, não há espaço para deslocamentos, não há espaço para atividades comerciais fora das lojas. Claro que queremos reabrir a economia, mas achamos que devemos fazê-lo de uma maneira diferente de antes.”
Em Londres, conta este outro artigo do “The Guardian”, pondera-se algo semelhante: a possibilidade de retirar-se os carros das principais estradas da capital britânica para, tal como em Atenas e Milão, oferecê-las de bandeja a peões e ciclistas. Neste caso prevê-se que seja apenas durante os tempos da pandemia e do combate à propagação do novo coronavírus.
A ideia é convidar os residentes a manterem-se ativos e em segurança, tendo em conta também aqueles que não podem aderir ao teletrabalho e que têm de se deslocar para os empregos. Por isso, a empresa Transport of London, responsável pelo sistema de transportes na cidade, está a analisar algumas rotas e estradas mais importantes ou concorridas para ampliar os passeios. Se é verdade que o recurso ao carro e o tráfego caíram a pique, também é verdade que o distanciamento social recomendado leva os peões a caminharem no asfalto onde apenas deveriam circular carros e outros transportes.
Nos Estados Unidos, contava em abril o CityLab da Bloomberg, multiplicaram-se as ciclovias, repensou-se o trânsito, fecharam-se estradas a favor dos peões. As medidas são temporárias e, lá está, respondem aos tempos de pandemia. Esta publicação escrevia então que a luta contra o coronavírus “paralisou as cidades”. Ou seja, com um terço da população mundial em confinamento, o trânsito desapareceu nas principais estradas pelo mundo fora. As viagens nos transportes públicos mergulharam 80% entre o início de janeiro e pelo menos meados de abril.
“Pedalar contra a pandemia”, pode ler-se num artigo do “El Comercio”, um periódico peruano. “As ciclovias de Lima, que se pensava construir nos próximos cinco anos, serão construídas em três meses”, escreve aquele diário, garantindo que a bicicleta se transformou no meio de transporte preferido em tempos de pandemia. Afinal, o vírus chegou de avião, comboio e autocarro. “O coronavírus não viaja de bicicleta”, garante ainda aquele jornalista peruano, que concluiu que este objeto possibilita o tão afamado e necessário distanciamento social.
A tecnologia, que nem é assim tão impossível de imaginar ou retirada de um episódio de “Black Mirror”, também deu um passo em frente nestes tempos, encontrando soluções para as mãos e superfícies se misturarem cada vez menos. Por exemplo, conta ainda o CityLab, os botões para os peões implorarem por um sinal vermelho para os carros são automáticos em Perth (Austrália), Auckland (Nova Zelândia) e Boston e Massachusetts, nos Estados Unidos. Em cidades como Londres e Glasgow, na Escócia, por exemplo, o sistema de partilha de bicicletas ficou gratuito. A batalha pelo aumento das ciclovias está a vingar no mundo, a que se juntam o encerramento de estradas ou limitação do trânsito. E isso vislumbra-se em Berlim, Bogotá e Cidade do México, sublinha o texto do CityLab. Na Cidade do México, já agora, o plano passava por disponibilizar ciclovias por uma extensão de 130 quilómetros.
Em Nova Iorque, por exemplo, foram autorizadas, no início de abril, as bicicletas elétricas e as scooters, o que beneficiou aqueles que trabalham em entregas ao domicílio e não só, escrevia então o “The Verge”.
As cidades foram mudando. A pandemia transformou muitas dinâmicas, até aquelas que porventura nem ousávamos questionar. Mas aqui estamos nós a questionar que futuro seria ou será este com cidades mais limpas, menos barulhentas, nas quais até animais selvagens se exibem sem pudor (à procura de alimento, sim, mas também curiosos por este outro lado mais clean e menos urgente que oferecemos nos últimos tempos). No fundo, é mais ou menos como se pode ler neste artigo da CNN: “Para os defensores de cidades caminháveis, não poluídas e sem veículos, as últimas semanas ofereceram-lhes uma oportunidade sem precedentes de testarem as ideias que defendem há muito tempo”.
As cidades vão ser repensadas, já o estão a ser. Os criativos vão criar. Por exemplo, no tal artigo da CNN mencionado acima, contam-nos que uma empresa checa já propõe inscrições no solo para situar cada transeunte, promovendo o distanciamento social. Ou um atelier austríaco, que imagina um jardim em forma de labirinto, com espaços onde se podem enfiar aqueles que querem estar isolados. Outra: um designer italiano, de Milão, imagina bancos públicos com escudos, criando assim uma espécie de bolha de segurança. Mas há mais: elevadores inteligentes e portas que podem ser abertas com cotovelos, poupando as mãos, que transportam um sem fim de bactérias, são outros exemplos.
As ideias são como uma torneira impossível de fechar. Resta saber se os hábitos e apostas implementados, ou que se magicam para o futuro, para combater um vírus vão permanecer depois da pandemia, ou se vamos esquecer rápido e retomar a normalidade por que tanto suspiramos.