Se o novo coronavírus se estabelecer como um vírus endémico e teimoso semelhante à gripe, é quase certo que não haverá doses suficientes de uma vacina durante vários anos, escreveu esta segunda-feira o jornal “The Washington Post”, que cita vários especialistas. Cerca de 70% da população mundial – ou seja, 5,6 mil milhões de pessoas – deverá precisar de ser inoculada para se atingir a imunidade de grupo e retardar a propagação do vírus, acreditam os cientistas.
O cenário que os especialistas em saúde pública mais temem é um confronto mundial em que os fabricantes vendem apenas aos maiores licitadores, os países ricos tentam comprar todos os suprimentos e os países onde os fabricantes estão localizados açambarcam as vacinas para os seus cidadãos. Os ímpetos nacionalistas de alguns países podem efetivamente comprometer o imperativo estratégico de conter os principais focos de propagação, incluindo os países pobres que não conseguem pagar a vacina.
Os defensores de uma perspetiva internacionalista da saúde querem evitar uma repetição de 2009, quando países ricos – incluindo os EUA, então presididos por Barack Obama – se colocaram na fila da frente da vacina contra a gripe suína H1N1, prossegue o “Post”. Os países menos desenvolvidos ficaram então desguarnecidos até a pandemia ter abrandado. Esta abordagem poderá vir a ser seguida pelo atual Presidente norte-americano, Donald Trump, e por outros líderes mundiais com impulsos nacionalistas e populações ansiosas por aplacar a ameaça sanitária e reabrir a economia, sugere o jornal.
Na última década foram montadas estruturas mais robustas de planeamento internacional para as vacinas contra a gripe. No entanto, essas estruturas não se aplicam automaticamente ao coronavírus, alerta David Fidler, investigador em cibersegurança e saúde global no Conselho para as Relações Exteriores e professor convidado na Faculdade de Direito da Universidade de Washington, em St. Louis. A ameaça muito mais ampla do coronavírus pode dificultar a atuação conjunta dos países e revelar-se especialmente complexa para os EUA, que lideram em número de casos confirmados de infeção e de mortos a nível global.
Projetos de desenvolvimento de vacina rondam os 120
A consultora farmacêutica Avalere Health estima em cerca de 120 o número de projetos de desenvolvimento de uma vacina financiados por governos, universidades, instituições sem fins lucrativos e empresas privadas. A Johnson & Johnson (J&J) é uma das empresas nessa corrida. O Expresso falou com o cientista João Miguel Freire, que trabalha há um ano e meio para a J&J na cidade holandesa de Leiden e integra um grupo de investigadores que estão a desenvolver uma vacina para o novo coronavírus. Se tudo correr como planeado, espera, juntamente com os seus colegas, ter “algo para dar ao mundo” em janeiro do próximo ano.
A Pfizer, que está a testar vários candidatos à vacina, identificou fábricas nos EUA e na Bélgica e tenta proteger a sua cadeia de fornecimento. O objetivo é ter entre 10 milhões e 20 milhões de doses disponíveis no outono e centenas de milhões de doses no próximo ano. A empresa de biotecnologia Moderna tem uma fábrica num subúrbio a sul de Boston capaz de produzir 100 milhões de doses num ano e anunciou recentemente uma parceria de 10 anos com a suíça Lonza para expandir a capacidade de fabrico.
Também a britânica GlaxoSmithKline e a francesa Sanofi comunicaram em abril que iriam colaborar. Numa declaração conjunta, as duas farmacêuticas divulgaram ter assinado “uma carta de intenções” para o desenvolvimento de uma vacina, “usando tecnologia inovadora de ambas as empresas para ajudar a enfrentar a pandemia em curso”. No caso de a primeira fase dos ensaios clínicos, prevista para o segundo semestre de 2020, ser “bem sucedida e sujeita às considerações regulatórias”, as farmacêuticas preveem poder disponibilizar a vacina “até à segunda metade de 2021”.
O esforço dos investigadores e a colaboração entre farmacêuticas têm atingido níveis sem precedentes. Contudo, além da demora que todo o processo de desenvolvimento de uma vacina representa, mantém-se o risco de açambarcamento por parte dos países mais ricos e de as doses se revelarem insuficientes caso o vírus persista.
Segundo os dados mais recentes da Universidade Johns Hopkins, há cerca de 4,2 milhões de casos confirmados de infeção, quase 290 mil mortos e 1,5 milhões de recuperados da covid-19 em todo o mundo.