Coronavírus

Covid-19. O retrato de uma guerra em duas frentes, na oferta e na procura

Dirigentes associativos falam em cenário de guerra. Encerramentos, layoff e atrasos nos pagamentos começam a entrar nas rotinas diárias da indústria e comércio. O choque é duplo, do lado da procura e do lado da oferta

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No dia em que o país espera uma declaração do do Presidente da República a decretar o Estado de Emergência e o Governo já anunciou um pacote de medidas que corresponde a um total de 9200 milhões de euros, entre alívio de obrigações fiscais (5200 milhões), garantias públicas (3000 milhões) e alívio das contribuições sociais (1000 milhões), o Expresso faz um ponto da situação com alguns dos principais sectores da economia nacional sobre o que se está a passar no terreno.

Fábricas como a Autoeuropa, PSA, Renault e Continental Palmela, já fecharam. Lojas de marcas nacionais e internacionais como a Ikea, Parfois ou Sacoor, também. Restauração, cabeleireiros e outros estabelecimentos vão engrossando a lista de quem decide fechar portas de norte a sul do país.

Comércio e Serviços: Paragem começou pelo norte

“É impossível quantificar os estabelecimentos comercias encerrados, mas são muitos e são cada vez mais, das marcas internacionais ao comércio tradicional” diz ao Expresso João Vieira Lopes, presidente da Confederação de Comércio e Serviços de Portugal, sublinhando que a tendência é transversal a todos os sectores, deixando basicamente de fora apenas a cadeia alimentar. E até aí, com o alastrar da pandemia é previsível que algumas pequenas mercearias de vizinhança venham a ter de encerrar por não terem estruturas de pessoal que permitam rotação de trabalhadores como nas grandes superfícies, refere.

Estes encerramentos, comuns ao comércio de rua e à prestação de serviços como é o dos salões de cabeleireiro, mas também a empresas de transporte de passageiros e de mercadorias é variável ao longo do país e não obedece a regras, mas “é fácil perceber que começou por se fazer sentir mais a norte, onde o surto foi mais sentido nos primeiros dias da crise, tendendo a alastrar para sul”, refere.

No caso dos transportes, nesta fase, as paragens são especialmente sentidas nas empresas ligadas a transportes escolares e turismo, mas até nas mercadorias há já reflexos, devido ao impacto do encerramento da indústria automóvel em Espanha, acrescenta.

No setor da restauração “está tudo a fechar”, confirma Condé Pinto, presidente executivo da APHORT, Associação Portuguesa de Hotelaria, Restauração e Turismo, onde ainda não há números do impacto da Covid-19, mas há a certeza de que "a infeção será grave" e de que 80% dos encerramentos ficam a dever-se à falta de clientes, enquanto os outros 20% são decididos por pressão dos trabalhadores.

A AHRESP - Associação da Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal fala em milhares de restaurantes fechados em todo o país e já entregou um pacote de 40 propostas de “medidas urgentes” ao Governo, onde inclui a disponibilização de uma linha de apoio à tesouraria de 1000 euros mensais por trabalhador no canal HORECA (hotelaria e restauração), que “vive hoje uma das piores crises de sempre devido à propagação do COVID-19".

Metalurgia: “O agravamento é diário, mais a maioria resiste”

Entre o cancelamento de encomendas e a falta de matérias-primas e componentes que algumas empresas começam a sentir, as empresas da fileira metalúrgica, líder das exportações nacionais, esta a perceber que “o agravamento (do quadro) é diário, mas a maioria resiste”, afirma Rafael Campos Pereira, vice-presidente da associação sectorial AIMMAP.”

“As empresas estão a encarar este momento como uma guerra e estão a dar o peito ao combate”, sublinha o dirigente associativo, adiantando que num universo de mais de 15 mil empresas ativas, há já alguns encerramentos, “mas são residuais”.

Em alguns casos, há empresas a gerir férias antecipadas, mas a maioria está a laborar e ainda vai recebendo matérias-primas e componentes, sendo certo que muitas estão, também a preparar medidas de layoff. “É das matérias que mais tem levado os associados a pedirem o nossos apoio”, admite Rafael Campos. “No entanto, também tivemos esta semana, três pedidos de minutas de contratos de trabalho, o que é um sinal de esperança”, acrescenta.

Quanto ao futuro, os contactos diários com as empresas mostra que se a maioria não tem ainda problemas significativo no que respeita a abastecimento de matérias-primas, absentismo ou encomendas, “o sentimento geral é de que tudo vai complicar-se e muito nas próximas semanas, designadamente no sector automóvel”, diz.

E a AIMMAP também está a aproveitar o know how nacional para agilizar a produção de máquinas que permitem produzir máscaras de proteção para os portugueses usaram durante a pandemia.

Calçado: há empresas a fechar, mas são poucas

“Há empresas que decidiram fechar, mas não serão mais de duas dezenas até ao momento”, diz ao Expresso Paulo Gonçalves, diretor de comunicação da APICCAPS, a associação da fileira do calçado, a frente de um cluster com duas mil empresas.

Admite que mais empresários do sector podem aderir a este grupo nos próximos dias. “Ha muita indefinição no ar”, comenta, admitindo que a associação tem recebido muitos pedidos de informação sobre o quadro legal do layoff.

Depois do “bom arranque de ano”, com as exportações em alta, invertendo a tendência de quebra dos dois anos anteriores, a pandemia veio obrigar as empresas a enfrentarem um quadro novo com quebras e cancelamento de encomendas e a ameaça das consequências da paragem do sector do retalho em quase toda a Europa.

A par disto, é o futuro que também fica comprometido porque os novos projetos que deviam de estar a avançar, designadamente no que respeita às coleções de outono e inverno estão parados. “Devíamos de estar a avançar no desenvolvimento de produtos de raiz e na produção e tudo isso está parado”, acrescenta, sublinhando o grande impacto da paragem de Itália, que vale 40 milhões nas exportações dos sapatos made in Portugal

Têxteis: De Itália chegam notícias de atrasos nos pagamentos

“As coisas estão a ficar complicadas e com o retalho a fechar um pouco por todo o lado a indústria ainda vai sentir mais dificuldades”, diz Mário Jorge Machadio, presidente da ATP - Associação Têxtil e Vestuário de Portugal, admitindo que as fabricas do sector vão começar a fechar nos próximos dias, primeiro na confeção, mais próxima do retalho e depois, em cascata, em toda a fileira.

As grandes cadeias estão a suspender entregas, não hã encomendas, as matérias primas e componentes estão a chegar cada vez mais lentamente e os italianos que são um dos principais mercados do sector começam a avisar os fornecedores de que vão ter de atrasar pagamentos.

Este é mais um sector em que os pedidos de informação sobre layoff estão a multiplicar-se, mas só 10% dos trabalhadores estarão em casa a tomar conta dos filhos que não podem ir à escola.

Na ANIVEC, associação industrial focada na indústria da confeçao, César Araújo garante que as fábricas continuam a ser um local seguro para trabalhar. “Estamos a fazer as nossas máscaras, ninguém entra nem sai das instalações sem serem os trabalhadores e tudo é higienizado cuidadosamente por isso somos um local seguro”, diz o empresário e dirigente associativo.

Admite que em algumas empresas as matérias-primas e componentes começam, às vezes, a faltar, mas o sector tem recorrido “á entreajuda para evitar quebras de produção”. E o que pedem mais uns empresários aos outros? Coisas como telas, botões, fechos, crinas e amaciadores, responde admitindo que o impacto no consumo “venha a fazer mossa”.

“A verdade é que estamos numa guerra e não conhecemos o inimigo”, afirma. E por isso, um grupo de várias empresas de referência do sector estão já mobilizadas para colocarem os seus ativos ao serviço da saúde pública, disponibilizando competências e capacidades técnicas para assegurarem a produção de equipamentos de proteção individual e vestuário de trabalho para os profissionais de saúde, como médicos e enfermeiros.

Mobiliário: 50% das empresas para na próxima semana

“Esta crise é distinta das anteriores, pois estamos a assistir a um choque tanto do lado da procura, como do lado da oferta”, diz ao Expresso a direção da APIMA - Associação Portuguesa das Indústrias de Mobiliário e Afins, referindo “problemas e carências ao nível da cadeia de fornecimentos, em particular de Itália (como as peles) e de Espanha, bem como na distribuição, fruto da interrupção de atividade de grande parte dos clientes europeus e dos condicionamentos ao nível do transporte transnacional”.

Assim, “há várias empresas do cluster que já suspenderam a produção, e é expectável que o número cresça ao longo dos próximos dias. As previsões da APIMA apontam para que, no início da próxima semana, cerca de 50% das empresas do cluster tenham interrompido a laboração”, antecipa a associação setorial de uma fileira que exportou 1,9 mil milhões de euros 2019.