Os ponteiros do relógio da torre dos Paços do Concelho marcam as 10h30 de uma manhã de sol, mas um manto de vazio cobre o Porto. Há um silêncio que se propaga, ensurdecedor e estranho à azáfama natural da Avenida dos Aliados. A cidade está deserta e o vazio inscreveu o medo em toda a parte. Nas lojas, nos poucos carros que circulam, nas pontes, nas ruas, em todo o lado. Para nos lembrar que o surto da Covid-19 é uma doença, para a qual ainda não há cura.
"— Não queremos barulho, mas nós não somos lixo! Somos seres humanos, como toda a gente, feitos de pele, carne e osso."
A voz de Rosa Félix irrompe o silêncio, no exterior da estação de metro da Trindade. A ela juntam-se mais duas dezenas de funcionárias da empresa Iberlim, numa paralisação em protesto contra a falta de condições de trabalho e de segurança. São estas mulheres que, todos os dias, asseguram a limpeza da estação, um trabalho que envolve aproximadamente 80 pessoas. Fazem-no sem luvas, gel desinfetante ou máscaras que as protejam.“Enquanto não nos derem o nosso material de segurança, nós não trabalhamos, até porque isto já não vem de agora. É uma situação que se arrasta e nós continuamos a trabalhar assim, sem nada”, assegura Rosa, de 47 anos, ao Expresso. “Temos o caso de uma colega que está à espera do resultado do [teste]. Só ao final de tarde é que saberemos o que se passa ou não com ela”, relata a funcionária, lembrando que “limpeza pede proteção”. “Nós a trabalhar na Metro do Porto estamos sujeitas a muita coisa. Não sabemos quem passa por nós, nem aquilo em que mexemos”, frisa Rosa Félix. “Foi-nos prometido o envio do material ainda hoje, mas de promessas está o mundo cheio”, acrescenta.
Vazio está o interior da estação, onde os veículos chegam despidos de gente e de onde vão saindo algumas, poucas, pessoas. Aumento só mesmo na precaução: multiplicam-se as pessoas que por ali passam com uma máscara a tapar os rostos fechados. Uma das pessoas que ali aguarda, segurando uma mala de viagem, é Margarida Teixeira. “Estou a chegar da Irlanda”, conta ao Expresso, e os próximos dias, assegura, “vão ser passados em casa”. O cenário esvaziado e quase fantasmagórico da Invicta não a surpreende. “Lá também estava assim”, descreve a viajante de 60 anos, que confessa sentir “um pouco de receio em usar os transportes públicos neste momento”.
Lá fora, os autocarros passam despojados de passageiros, como é o caso do 202 que segue em direção ao Passeio Alegre. Na paragem, não há ninguém, todos parecem estar por estes dias estacionados em casa.
Atravessando a passadeira, entramos na Farmácia da Trindade, com apenas um par de pessoas a aguardar pelo atendimento. “Máscaras e gel desinfetante já não temos há bastante tempo”, conta a diretora técnica Emília Moreira, uma vez que “não têm chegado em quantidade necessária para aquilo que nos pedem”.“As pessoas não precisam de ter stocks em casa”, enaltece a farmacêutica, que nota “uma quebra em relação a um dia normal”, mas sustenta que “isso também acontece porque a entrada do número de pessoas está a ser limitada”. Apesar de os funcionários tentarem passar a maior e melhor informação possível, “algumas pessoas ainda não percebem a necessidade de afastamento”, e muitas dirigem-se ali “alarmadas com eventuais sintomas, mesmo que não tenham febre”, refere Emília Moreira.
“O que vai ser?”, pergunta António Azeredo, atrás do balcão, com apenas três clientes sentados nas mesas à sua frente. É ele o dono do Urca Café Pastelaria, na Rua do Bonjardim, um estabelecimento de portas abertas há 14 anos. Tal como acontece todos os dias, de segunda a sexta, António está a trabalhar desde as 6h30. Mas este não é um dia como os outros. “Hoje estamos com uma quebra de afluência muito grande, com uma redução de 70% dos clientes”, conta o proprietário de 50 anos. “Se esta redução se mantiver, vou fechar e aproveito para fazer umas obras no café”, confidencia.
Dali seguimos para a Rua Santa Catarina, a Meca do comércio da baixa portuense, onde os fiéis são agora muitos escassos, descrentes pelo medo. Várias lojas estão fechadas, com anúncios à porta. Outras vão resistindo, como é o caso da Ricami Verónica, onde Fernanda Rodrigues, agarrada à máquina de costura Cornely, oferece um bordado, feito em menos de minuto, ao Expresso.
É uma forma de chamar os poucos fregueses que por ali passam. “A clientela, nesta altura, está muito mais fraca, até porque vivemos muito dos turistas, sobretudo franceses e alemães”. Entre risos, a costureira de 45 anos, brinca: “Os portugueses são tão certinhos, tão certinhos que estão todos de quarentena”. A boa disposição está sempre cosida nas palavras de Fernanda: “Não viu como nós aqui, no Porto, semos bem comportados quando comparados com Lisboa? Somos bem mandados ou não somos, carago? O povo do Norte é excelente, não há ninguém como nós”. Ainda assim, não esconde a preocupação, sobretudo pelo filho de 13 anos, neste momento sozinho em casa e sem ir à escola. “Não iremos fechar até que alguém nos diga. Temos contas para pagar. Quem é que nos vai pagar as contas?”, interroga.
Num passo apressado para sair do shopping Via Catarina segue Alexandre Oliveira, com uma máscara a esconder-lhe o rosto. “É para me proteger. Acho que é essencial, para mim e para as pessoas que me rodeiam”, afirma o jovem de 22 anos. “Só aqui vim mesmo por necessidade, porque o meu telemóvel estragou-se. Vim arranjá-lo e vou já para casa”, assegura o estudante de Design e Comunicação na ESAD, atualmente sem aulas, refugiado em casa, juntamente com o pai, “ainda antes de ter sido decretada quarentena”, por considerar que “esta situação é mais grave do que aquilo que temos noção”, defendendo que “já deviam ter fechado as fronteiras há imenso tempo”.
Prestes a encerrar está o Garota da Baixa. “O mais certo é fechar, pelo menos durante uma semana”, admite Vítor Loureiro, que todos os dias chega às 6h da manhã para confecionar o negócio do restaurante localizado na Rua das Flores. “Os clientes habituais quase desapareceram”, nota o proprietário de 49 anos. “Com a histeria à volta deste problema, as pessoas aparecem cada vez menos”, lamenta o dono de uma casa aberta há 10 anos e que dá emprego a cinco trabalhadores. “Vai-se levando. Esperemos que não seja nada”.