Sociedade

Foram retirados às famílias quando eram crianças e agora aprendem a viver sozinhos. Bruna já sabe o que fazer: “Vou ter com a minha mãe"

Viveram anos em instituições para crianças em risco. Agora preparam-se para a autonomia em apartamentos sem adultos, com todas as obrigações da gestão doméstica e pessoal. Mas faltam vagas. E há cada vez mais jovens retirados de casa

Bruna, 22 anos, esteve uma década institucionalizada. O seu quarto é agora o seu mundo, com silêncio e espaço para os posters de música

Douglas, 15 anos, estava sozinho em casa com os dois irmãos, em Moscavide, quando chegaram cinco carrinhas da polícia para os levar. A mãe, com quem viviam, fora presa.

Bruna tinha 11 anos quando foi retirada, juntamente com o irmão mais novo, de uma família marcada pela violência doméstica, do pai contra a mãe e eles no meio.

Fátima, 16, estava na escola quando as autoridades a foram buscar e aos três irmãos, e já não os deixaram voltar à casa nas Galinheiras.

Cada um, à vez, foi acolhido em diferentes instituições de apoio a crianças e jovens em risco. Viveram lá três anos, dez anos, um ano e meio. Hoje são vizinhos no mesmo prédio, em São Domingos de Benfica, elas no primeiro andar, ele no segundo, cada um com o seu quarto em casas sem adultos. Aos 23, 22 e 18 anos estão em processo de autonomização. Lá fora está o resto da vida.

Espalhados pela capital, misturados na malha urbana, sem qualquer identificação distintiva, a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) tem atualmente 17 apartamentos, T2, T3 e T4, com uma organização de espaços igual à de uma casa normal, onde vivem 55 jovens, 3 a 4 em cada um, entre os 16 e os 24 anos.

Parecem residências de estudantes mas aqui todos os moradores têm Medidas de Promoção e Proteção aplicadas por comissões de proteção de crianças e jovens ou pelo Tribunal de Menores, sinal de que o Estado teve de se chegar à frente quando a família lhes falhou. Cresceram em acolhimentos coletivos e agora preparam a independência no primeiro espaço só deles, onde as decisões lhes pertencem e as obrigações também.

São normalmente jovens que passaram por percursos de acolhimento institucional durante muitos anos, quer na Misericórdia quer noutras instituições, embora tenhamos alguns que vêm diretamente de contextos familiares complicados, e que agora precisam de apoio na transição para a vida adulta. A maioria são estudantes e este ano temos orgulhosamente 22 em ensino superior, entre licenciaturas, mestrados, pós-graduações, especializações. E isso é muito bom, porque a educação é o motor, o elevador social”, explica Margarida Cruz, psicóloga e diretora da equipa técnica de apoio aos apartamentos de autonomia.

Sozinhos aprendem as competências pessoais e sociais necessárias à vida independente, desde a manutenção da casa, a gestão doméstica, confeção das refeições, a gestão financeira do dia-a-dia, a utilização do tempo, e por arrasto o peso da responsabilidade e da autonomia. Porque não há lá ninguém a fazer por eles, nem horários estabelecidos.

Aprendem fazendo, e errando, com o acompanhamento próximo de educadores, dois por apartamento, que estão sempre contactáveis e os visitam periodicamente – com a frequência a espaçar-se ao longo do tempo de residência - e os ajudam nas miudezas do dia-a-dia, como a quantidade de arroz necessária para uma refeição, ou trabalham com eles as dúvidas mais estruturais, como o planeamento da carreira profissional ou a continuidade dos estudos. Ou os responsabilizam quando as pilhas de roupa na cadeira ou de loiça suja na cozinha ultrapassam o limite do razoável. Já houve casas em que, por estratégia, se diminuiu o número de pratos disponíveis.

Margem para descarrilar

“Damos sempre aqui muita margem para poderem acontecer algumas situações mais chatas, descarrilar um pouco, porque há sempre espaço para voltar atrás e reiniciar. Os apartamentos são um contexto seguro que lhes permite arriscar. Queremos muito que sejam autónomos nos processos de tomada de decisão. A nós cabe-nos passar o máximo possível de informação das alternativas que há e antecipar as consequências das escolhas que são feitas. Por vezes vê-se logo que vai correr mal, que por ali não é caminho, mas deixamo-los ir. E depois cá estamos para apoiar”, esclarece a psicóloga.

Douglas, 23 anos, acabou a licenciatura em Gestão de Recursos Humanos, começou o mestrado e um estágio. O outro lado da vida chama-se Bruna, a namorada com quem está há 5 anos
Ana Baiao

Há também um apoio financeiro da Santa Casa, de cerca de 425 euros, transferido mensalmente para a conta bancária de cada um, que tem que dar para pagar uma renda simbólica, participar nas despesas da casa, fundo comum e limpeza, para transportes, telemóvel, Internet, material escolar, alimentação e ainda permitir uma poupança obrigatória, para terem economias aquando da saída dos apartamentos e da integração na comunidade. É um ensaio para a vida. Às vezes falham os acordes e seguem-se semanas a arroz com atum. Mas também há quem tenha conseguido juntar para tirar a carta, para viajar nas férias, para trocar de telemóvel.

A SCML só avança com mais apoio em casos extraordinários, como próteses dentárias, pagamento de propinas a jovens estrangeiros, adiantamento da bolsa escolar ou computadores com maior capacidade, para quem está a estudar em áreas mais técnicas.

“O que acontece com a maior parte dos jovens que vivem no seio da família é que dos 15 aos 25 anos nem de longe nem de perto se autonomizam. Aqui há um processo de amadurecimento acelerado, porque contam com eles próprios. A ideia é que precisem cada vez menos das equipas e depois continuem a fazer o seu projeto de vida, o seu caminho. E o ideal era que todos os jovens institucionalizados passassem por respostas de autonomização, mas ainda estamos longe”, reconhece António Santinha, diretor da Unidade de Apoio à Autonomização da SCML.

Essa distância é bem patente no último relatório Casa, relativo a 2023, que caracteriza a situação nacional de acolhimento de crianças e jovens. Em Portugal há 6446 crianças e jovens em acolhimento, a esmagadora maioria vive em instituições (84%). E estão a aumentar, principalmente as retiradas de emergência. Metade tem 15 anos ou mais. Desses, só 200 estão atualmente num apartamento de autonomização (além da Santa Casa, há mais instituições com estas valências a nível nacional). Ainda assim, as vagas aumentaram 92% em 4 anos.

A Misericórdia de Lisboa prevê a abertura de mais três apartamentos, mas ainda não há data definida para o alargamento. “De momento temos muitas sinalizações de jovens que deveriam passar para a autonomia mas não há vagas. Os das instituições, então, deviam passar todos”, reconhece a psicóloga, alertando, porém, que é preciso uma avaliação prévia para aferir se o perfil se adequa à exigência da resposta. “Qualquer um que tenha filhos e que imagine um miúdo de 15 ou 16 anos a viver sozinho e a controlar todas as áreas da sua vida… se não houver uma capacidade prévia de autorregulação pode ser desastroso”, acrescenta.

Fátima, 18 anos, está a acabar o curso de Cozinha. Mas o que ela quer mesmo é entrar em Psicologia, para trabalhar com crianças
Ana Baiao

“O meu plano”

Para Douglas não foi. A parte das limpezas ainda não entrou na lista de atividades favoritas, mas tudo o resto é visto como ganho. Brasileiro, tinha chegado a Portugal há 9 meses com o irmão mais novo, quando foram retirados de casa na sequência da prisão da mãe – que continua a cumprir pena, já lá vão 9 anos. Tinha 15 quando foi viver para a Casa da Fonte, uma instituição de acolhimento de emergência em Oeiras. Esteve lá cerca de três anos e passou para o apartamento de autonomia de São Domingos de Benfica. Hoje, aos 23, concluiu a licenciatura em Gestão de Recursos Humanos na Universidade de Lisboa e entrou recentemente no mestrado. Em setembro começou a estagiar para ganhar experiência e estar apto a entrar no mercado de trabalho depois de entregue a tese.

Tem o futuro próximo todo delineado, ou não estivesse perto dos 25 anos, a idade máxima por lei para a manutenção de um jovem em autonomia. No seu quarto os livros de estudo ocupam um lugar de destaque, a par da fotografia da namorada, com quem está há cinco anos, e do ‘mini-ginásio’. O irmão, agora com 21 anos, também vive no apartamento e está a tirar um curso de ‘personal trainer’.

Bruna, 22 anos, também tem o irmão por perto, no mesmo prédio. Aos 15 anos, é o mais novo jovem autónomo da Santa Casa, aluno de quadro de honra desde sempre, um crânio a matemática e dotado de um sentido de responsabilidade incomum para a idade. Vê-lo a ele seguro, bem, apoiado, dá à irmã margem para pensar num futuro autónomo. Até agora foram sempre os dois, juntos numa década de institucionalização na Aldeia de Santa Isabel, em Sintra.

Ela ganhou há dois anos o seu quarto, e com ele o silêncio que nunca teve, uma parede para os posters de música, espaço para a prancha de surf com que substituía a terapia que odiava. Está no último ano do curso superior de Gestão de Marketing, quer trabalhar mal acabe mas só durante um ano. Depois vai para França. “Vou ter com a minha mãe, ela vive lá. É o meu plano. O meu irmão é sempre a minha preocupação, mas eu sei que ele aqui está bem”.

Fátima ainda não pensa na saída e os planos estão mais assentes no futuro próximo. Chegou há um ano ao apartamento, só agora atingiu a maioridade, o curso técnico de cozinha está no fim e para o ano quer entrar na faculdade no curso de Psicologia, para trabalhar com crianças.

Fala da sua retirada da família com alegria, a mesma que sentiu no dia em que a polícia a foi buscar à escola. Há uma fotografia no seu quarto a registar o sorriso, junto com dezenas de outras alinhadas numa espécie de estendal de recordações, onde os dois anos passados no lar de acolhimento, na Praça de Espanha, ganham destaque. “Foi ok, não me incomodou nada. Foi uma mudança de vida muito boa. Não iria estar no caminho onde estou hoje, se calhar tinha desistido da escola e sempre fui uma excelente aluna. Mas dava-me com as pessoas erradas e acabava por fazer as coisas que eles faziam”, recorda.

Os primeiros tempos de autonomia foram solitários. Estranhou o silêncio depois do caos, faltavam-lhe os irmãos que ficaram no lar. Então acabava por lá passar o dia e só depois voltar para casa. Já passou entretanto. “Agora também já sou feliz aqui”.

Após a saída, que é trabalhada antecipadamente, os ex-inquilinos ainda são acompanhados durante seis meses, às vezes um pouco mais. Ajudam-nos a procurar casa, quarto e até mantêm o apoio financeiro. Uma exceção à regra nacional. De acordo com o relatório Casa, das 2303 crianças e jovens que cessaram o acolhimento em 2023 só 20% dos casos foram avaliados passados três meses, como manda a lei em vigor.

Pedro Freire, 37 anos, estreou há duas décadas o primeiro apartamento de autonomia da SCML
Nuno Botelho

Pedro Freire, 37 anos, já leva uma longa experiência de autonomia na vida real. Há cerca de vinte anos, foi estrear o primeiro apartamento da Misericórdia de Lisboa, situado em Alvalade. Com ele trazia a história de uma retirada de casa, aos 14 anos, onde tinha um pai violento e uma mãe com alcoolismo e entradas recorrentes na prisão. Na altura, em que a CPCJ privilegiava a permanência com a família, foi ele que teve de escolher sair. “Foi a primeira grande decisão que tomei e a melhor”, conta.

Passou dois anos na Casa da Alameda, um lar de emergência social da SCML, e traz desses dias ainda as melhores referências da sua vida e a primeira festa de aniversário a sério, aos 15 anos. Aos 16 vai para o apartamento, e para o primeiro quarto só seu. “Eu era um miúdo controlado, mas não era responsável. Acho que eles acreditaram no meu potencial”, graceja.

Até aos 20 anos, quando decide sair, acumulou incidentes culinários e até policiais, como quando organizou uma festa demasiado grande para poder convidar a rapariga de que gostava e que é hoje a sua mulher. Comeu muitos douradinhos, frango guisado e atum refogado com ovos, por não saber confecionar mais nada. Mas também se tornou bom aluno e acabou o curso técnico de ótica ocular, na Casa Pia, área em que se mantêm até hoje.

Depois do primeiro emprego no Colombo e o primeiro quarto alugado, foi progredindo na carreira e nos estudos. Licenciou-se em Gestão de Empresas, fez um MBA, um XBA, trabalhou 4 anos em Angola e hoje integra a equipa de gestão de negócio da Sonae.

“A casa de autonomia foi boa para criar um sentimento de alerta, de que não vai haver sempre chão. Logo nos primeiros meses estava no meu quarto sozinho e percebi que tinha de começar a planear a vida, deixei de pensar em sonhos mas em objetivos. Quero estudar e não consigo pagar a universidade mas também não tenho notas para entrar? Então tenho de ir trabalhar. E quanto custa? E quanto tenho de poupar? Acabei por ter sentido de realidade”, recorda.

Pedro vai ser pai em breve, de um menino. Esperou pelos 37 anos e a mulher Joana pelos 34. Foi um adiamento consciente. Estão juntos desde os 18, mas a vida tinha mesmo de seguir o rumo traçado. Primeiro os estudos, empregos fixos, crescimento profissional, estabilidade financeira. Ambos sentiram na pele o resultado de crescer em famílias fora dos eixos. David vai ter outra sorte. “Não sei com vai ser, mas sei que lhe vou dar o máximo de espaço para errar. Foi o que aprendi na autonomia, e vi o bem que me fez”.