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“Antes do smartphone, olhava à volta e esperava pelas coisas. Agora, se um vídeo tem mais de 20 segundos parece que já nem vale a pena ver”

Na última década, os telemóveis que são minicomputadores apoderaram-se de todos os aspetos do nosso quotidiano, redesenhando hábitos, rotinas e comportamentos. A diminuição da nossa capacidade de atenção é uma das consequências mais nítidas desta transformação, atestam utilizadores e especialistas ouvidos pelo Expresso

katemangostar/Freepik

Até há pouco tempo, Joana Santos tinha dificuldade em resistir ao vazio. Em cada momento livre que tinha, durante uma pausa no trabalho, quando ia a caminho de algum sítio ou enquanto esperava por alguém, a mão fugia-lhe imediatamente para o telemóvel. Em casa, raramente o deixava numa divisão antes de ir para outra. Sem dar por ela, intervalos de 10 minutos transformavam-se em duas horas de tempo de ecrã ao final do dia. Por outro lado, queixava-se constantemente de não ter tempo para nada, nem para as suas atividades prediletas, como a leitura. “Dava por mim a fazer scroll no Instagram com o livro aberto no colo”, conta.

O gesto irrefletido da médica, de 32 anos, é representativo de uma realidade que hoje atravessa diferentes gerações e contextos, produto de um tempo em que a informação nos chega através de várias frentes e a uma velocidade vertiginosa num dispositivo que podemos transportar para todo o lado. “Há quase uma necessidade de pegar [no telemóvel] e ver se há novidades”, descreve. “Mesmo depois de desativar as notificações, tinha a tentação de ir ao Instagram ou ao TikTok em vez de simplesmente existir.”

Joana considera que “o smartphone é ótimo para preencher tempos mortos”, mas reconhece que o uso excessivo do aparelho, e sobretudo das redes sociais, tem tido um impacto negativo na sua capacidade de atenção. “Se um vídeo tem mais de 20 segundos ou um texto é maior, parece que já nem vale a pena ver ou ler”, elabora.

Enquanto millennial faz parte da “última geração que realmente viveu antes dos smartphones”, o que lhe permite recuar a uma altura em que tudo acontecia a um ritmo mais lento e espaçado sem que isso causasse qualquer irritação ou frustração. “Antes do smartphone, simplesmente esperava pelas coisas, pensava na vida, olhava à minha volta”, recapitula Joana.

Durante a sua adolescência, já havia redes sociais, mas só se acedia a elas nos computadores. Nem toda a gente tinha uma destas máquinas ou a ligação à Internet necessária para entrar nas suas contas. “Era preciso esperar pela chegada a casa ou pelo intervalo na escola para aceder a tudo”, lembra a médica.

“Às vezes íamos à biblioteca para ver os Fotologs ou o Hi5 e depois a vida continuava”, resume a também humorista, que escreveu os seus primeiros textos para stand-up nessa altura num caderno que tinha sempre consigo. Além de afetar a sua concentração e reflexão, o uso do telemóvel foi sufocando cada vez mais a sua criatividade. “Gosto de ler e escrever, toco saxofone e aprecio uma boa música, mas o smartphone é sempre mais rápido e conveniente”, problematiza.

O aumento do trabalho e a consequente falta de tempo para os seus hobbies foi o ponto de rutura na relação de Joana com o smartphone e as redes sociais. Desativou as notificações, desinstalou as aplicações das redes sociais e recorreu a outras que condicionavam as funcionalidades do telemóvel. Não resultou. Acabava a desinstalá-las e a consultar o Instagram através do browser. Então, adotou uma postura mais radical para resgatar o compasso de espera que experimentou na adolescência: comprou um dumbphone, um telemóvel com teclas onde só tem o Whatsapp, essencial para se manter contactável. “Continuo a ter Instagram, TikTok e X, mas só os abro quando chego a casa.”