Sociedade

Droga nos Açores: substâncias sintéticas muito baratas e abundantes viciam jovens e deixam consumidores "no fundo do poço"

Há crianças a trocar charros por drogas sintéticas, quase todas indetetáveis nos testes de despiste a substâncias ilícitas, ficando mais alteradas, viciadas e doentes. Mais de um terço das novas substâncias psicoativas apreendidas em 2021 em Portugal foram recolhidas no arquipélago

RUI DUARTE SILVA

São “muito baratas”, viciantes e abundam nas ruas: em São Miguel, as novas substâncias psicoativas (NSP), vulgo drogas sintéticas, misturam-se com lixívia ou fertilizante em “laboratórios caseiros”, provocam surtos psicóticos e destroem funções cognitivas.

A experiência com drogas sintéticas foi para Pedro (nome fictício), de 56 anos e ex-consumidor, “aniquiladora” e “devastadora” - a abstinência deixava-o psicologicamente no “fundo do fundo do poço” e meses bastaram para acabar a viver na rua.

Sóbrio há um ano, começou a ingerir drogas sintéticas em 2021 na ilha de São Miguel, nos Açores, e continuou intensamente, durante seis meses, em “casa de amigos, na rua ou num buraco qualquer”.

“Esta é uma droga de euforia, de loucura e poder, mas, quando passa, é o fundo do fundo do poço. Foi uma experiência devastadora, aniquiladora, que destrói física, psicológica e moralmente. A abstinência física não se nota muito, mas psicologicamente é muito forte, porque o chamamento está sempre presente: é só esta vez, é só uma brincadeira. Mas esta droga tem pouco de inocente”, garante.

O trabalhador da oficina de cerâmica da Arrisca - Associação Regional de Reabilitação e Integração Sociocultural dos Açores começou por fumar charros, foi “heroinómano durante 15 anos”, ficou limpo, mas a pandemia de covid-19 originou “uma recaída na heroína”. Em 2021, “num processo de divórcio e sem trabalho”, experimentou sintéticas, que comprava “em quantidade, porque saía mais barato”.

José Duarte Pacheco, de 60 anos, também trabalha na Arrisca, na parte de carpintaria, há 17 anos, após ter sido utente durante cinco.

Em criança, emigrou com os pais para os Estados Unidos da América, casou lá, comprou casa, carro, motas, e trabalhou numa fábrica de produção de telhados, mas andou “fugido à polícia por tráfico de droga” e foi deportado para os Açores.

De regresso a São Miguel, em 2006, sentiu-se “muito sozinho”. Voltou “a consumir heroína e comprimidos – Xanax, sem receita médica, comprado nos caminhos [na rua], a 10 euros a caixa”, durante quatro anos.

Nos últimos dois meses de consumo, limitou-se às sintéticas: “Experimentei. Todos falavam. Não gostei, porque ficava muito em baixo. Queres mais, queres sempre mais, nunca para. Tinha 50 quilos, estava tão magrinho”, lembra.

Em Ponta Delgada, há vendas e consumo, por exemplo, num jardim onde turistas tiram fotografias, adolescentes comem sandes e idosos jogam às cartas depois do almoço – as autoridades sabem, está à vista de todos, mas “consumir não é crime” e “vender sintéticas também não”, justifica a diretora-geral da Arrisca - Associação Regional de Reabilitação e Integração Sociocultural dos Açores, Suzete Frias.

“A cada semana surge uma substância nova. Vender só é crime se estiver incluída nas listas de consumos ilegais. Atualmente, há três na lista. Estamos sempre atrás do dano”, lamenta.

Relativamente ao projeto de lei que deu entrada na Assembleia da República para criminalizar as NSP, Suzete Frias considera que, “com novas substâncias a surgirem semanalmente, o problema de fundo mantém-se”.

Mais de um terço das NSP apreendidas em 2021 em Portugal foram recolhidas nos Açores, onde já foram registadas substâncias “nunca vistas” na Europa, revelou a Polícia Judiciária em 2022.

O número de consumidores de NSP na região não está contabilizado, mas, em março, estavam 937 utentes em programas de substituição opiácea e “muitos deles paralelamente consomem drogas sintéticas”, diz à Lusa a secretária regional da Saúde, Mónica Seidi.

Para alguns, será “muito complicado a parte cognitiva voltar à normalidade”, afirma Sílvia Moreira, psicóloga da Alternativa – Associação contra as Dependências.

“Se estão a ingerir combustível, inseticidas, lixívia ou acetona misturados com medicamentos, o que lhes vai acontecer ao cérebro? É veneno, literalmente”, avisa.

Também Suzete Frias menciona que as substâncias psicoativas “são misturadas nos Açores com fertilizantes, desinfetantes ou remédio de ratos”, produtos “tão nocivos” como a droga, “em laboratórios domésticos mas perigosos, por conterem materiais altamente inflamáveis”.

“O utente açoriano é essencialmente de policonsumos, que compra e consome substâncias baratas sem olhar o grau de risco que comportam”, revelou, numa resposta escrita, a Direção Regional de Prevenção e Combate às Dependências.

Segundo Suzete Frias, a “maior motivação” perante as NSP é o preço.

“Por dois ou três euros, compra-se um pacotinho para várias doses. Por outro lado, há uma maior abundância destas drogas”, indica.

Mas “a grande causa do consumo nos Açores é a pobreza”, sublinha, acrescentando que em São Miguel, a ilha com maior prevalência de consumos, a maioria dos dependentes “tem baixa escolaridade, vulnerabilidade social, e compra na rua”.

Segundo dados de 2022 do Instituto Nacional de Estatística, os Açores eram a região do país com maior taxa de risco de pobreza (28,5%).

Para a responsável da Arrisca, “é preciso o Governo investir na prevenção, no combate à pobreza, promover a economia, os empregos, o acesso à habitação”.

As NSP provocam “mudanças rápidas de comportamento e humor, agressividade, um tom de pele branco amarelado” e “distúrbios mentais e surtos psicóticos”, como “audições e visões e mania da perseguição”, conta a psicóloga Sílvia Moreira.

A maior parte dos consumidores, acrescenta, “sai de casa, ou só lá vai exigir dinheiro ou roubar alguma coisa”.

Um estudo da associação Novo Dia relativo a 2020 identificou 493 sem-abrigo nos Açores e “uma maior proporção de sem-abrigo por mil habitantes (2%)” do que no continente (0,84%).

Além dos que dormem na rua, há os que ali passam o dia, deambulando em caminhadas aparentemente intermináveis, a implorar “cinco cêntimos para comprar uma sandes”, ou parando à porta de supermercados com copos estendidos à espera de moedas.

O número de pessoas encaminhadas para tratamento em comunidades terapêuticas nos Açores passou de 26 em 2019 para 35 em 2022, 63 em 2021 e 25 em 2022, segundo dados da direção regional.

Por outro lado, o alcoolismo é, no arquipélago, “um problema tão grave como as sintéticas”, avisa a psicóloga da Alternativa, alertando que, “no regresso a casa, com tantas feridas abertas”, há uma tendência dos utentes de passar para o álcool, “legal, barato e culturalmente aceite”.

“Crianças trocam charros por sintéticas para contornar testes e ficam mais viciadas”

Dados do Instituto Nacional de Estatística revelam que, em 2020, os Açores tinham uma taxa de 27% de abandono escolar precoce entre os 18 e os 24 anos, enquanto o país atingia os 8,9%. Em 2021, aquela taxa foi de 23,2% nos Açores, quando a média nacional ficou nos 5,9%.

Segundo um estudo de 2019 do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD) dedicado aos jovens entre os 13 e os 18 anos, os Açores estão acima da média nacional no consumo de álcool, tabaco, droga e outros comportamentos aditivos.

Sílvia Moreira alerta que a adolescência é sempre um fator de risco, por ser uma “altura de não saber gerir as questões emocionais, de experimentar e de curiosidade”. Contudo, “há pessoas fora da idade de risco a começar logo pelas sintéticas, aos 30 anos”.

Nos Açores, há crianças a trocar charros por drogas sintéticas, quase todas indetetáveis nos testes de despiste a substâncias ilícitas, ficando “mais alteradas, viciadas e doentes”, descreve à Lusa Sílvia Moreira, psicóloga da Alternativa – Associação contra as Dependências.

“Passamos a ter crianças mais alteradas, mais viciadas, mais doentes. A partir dos 11 anos. Para fugir aos testes, deixam de fumar charros e passam a ter um problema maior”, lamenta.

Sílvia Moreira diz estarem em causa crianças que fumavam canábis, “sinalizadas por absentismo ou comportamento desadequado” pela escola ou outras entidades, e depois encaminhadas para a associação para fazer testes de despiste de consumo de drogas.

PJ apreendeu este ano droga equivalente a 90% do total de 2022

A Polícia Judiciária apreendeu nos Açores, nos primeiros seis meses do ano, 78 quilos de droga, na maioria haxixe, mas também cocaína, heroína e substâncias sintéticas, em quantidade equivalente a 90% do total de 2022, adiantou o coordenador regional.

“Em 2022, houve um aumento muito significativo de apreensões: mais 60% do que em 2021. Na primeira metade deste ano, já apreendemos uma quantidade equivalente a 90% do total do ano passado”, afirmou o coordenador da Polícia Judiciária (PJ) nos Açores, Renato Furtado, em entrevista à agência Lusa.

Segundo o responsável, em 2022 a força de segurança apreendeu na região mais de 88 quilos de droga, suficientes para mais de 216 mil doses.

Essas substâncias foram introduzidas no arquipélago açoriano "por vias aérea, através do circuito postal, e marítima, caso da importação de mercadorias ", onde o produto estupefaciente poderá vir dissimulado, e "através de correios de droga por via aérea".

O coordenador revelou que "prevalece a apreensão de haxixe", a substância estupefaciente "mais procurada e mais consumida" nos Açores, tal como no todo nacional e internacional.

Nos últimos três anos, “foi apreendido um conjunto superior a 53 mil doses de substâncias sintéticas para consumo" na região e que foram importadas.

Já em 2023, foi também apreendida uma quantidade muito significativa de metanfetaminas, perto de 20 mil doses, uma droga "sintética ultrapotente que também é comercializada na região".