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Aqui fala-se de contraceção: “Na farmácia familiar, tal como há paracetamol, também tem de haver preservativos ou pílulas do dia seguinte”

Os EUA aprovaram a venda, mediante prescrição médica, da pílula abortiva em farmácias. Em Portugal a situação “é bastante diferente” porque “existe uma cultura de contraceção”. “Se Portugal não facilitar o processo [de interrupção voluntária da gravidez], corremos o risco de num futuro próximo estarmos num extremo e das mulheres portuguesas também nos pedirem o mesmo”, alerta Ana Aroso, presidente da direção do norte da Associação para o Planeamento da Família, em entrevista ao Expresso

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A mifepristona é um medicamento que bloqueia os efeitos da progesterona - uma hormona necessária para a continuação da gravidez -, provocando o desprendimento do embrião do útero e, consequentemente, interrompendo a gestação. Este fármaco, que em Portugal apenas é administrado por um médico, vai ser disponibilizado nas farmácias norte-americanas. A decisão foi anunciada pelo Governo dos EUA nos primeiros dias do ano, mas tem causado problemas e já há tentativas de a travar - no Texas, grupos pró-vida já deram entrada de um processo judicial para impedir a medida de avançar.

“Trata-se de uma decisão importante e favorável no acesso ao aborto medicamentoso e globalmente no acesso ao aborto. Nos EUA o método cirúrgico é o mais utilizado e esta medida será favorável na acessibilidade ao aborto e ao aborto com método medicamentoso”, diz ao Expresso Teresa Bombas, ginecologista, obstetra e responsável pela Sociedade Portuguesa de Contraceção (SPDC). “Os EUA continuam a ser dos países onde há mais gravidezes não desejadas e que se recorre mais ao aborto. E isto é transversal a todas as mulheres norte-americanas, independentemente da idade. Há um grande défice na cultura de contraceção”, acrescenta Ana Aroso, presidente da direção do norte da Associação para o Planeamento da Família (APF).

Segundo dados mais recentes disponibilizados pelo Centro norte-americano para a Prevenção e Controlo de Doenças, entre 2017 e 2019, apenas 65,3% das mulheres em idade reprodutiva usavam algum tipo de método contracetivo. A esterilização feminina era a metodologia mais prevalente (18,1%), seguida pela pílula (14%), pelo dispositivo intrauterino ou implante contracetivo (10,4%) e pelo preservativo masculino (8,4%). “O uso de contraceção aumenta com a idade”, pode ler-se. A percentagem fixa-se nos 38,7% entre as mulheres na faixa etária entre os 15 e 19 anos, enquanto chega aos 74,8% entre os 40 e 49 anos.

“Esta pílula não deixa de ter alguns efeitos, não está isenta de risco. Usamos há muitos anos na Europa e os relatos de situações que correm menos bem são raríssimos, mas mesmo assim…”, vinca Ana Aroso

“Foi uma grande luta da sociedade americana assegurar que o medicamento estivesse disponível nas farmácias, mas isso tem alguns riscos que são precisos considerar”, ressalva a também ginecologista e obstetra Ana Aroso. “Sendo vendido em farmácias - sem acompanhamento médico - é preciso garantir que não vai ser usado em circunstâncias em que já não terá efeito ou que as mulheres não vão tomar só porque estão com a menstruação atrasada e suspeitam de gravidez. Há uma série de dúvidas que esta decisão me suscita.”

Para Teresa Bombas, sendo o comprimido vendido com receita médica, cabe ao médico que prescreve garantir que “as condições para a realização de um aborto com método medicamentoso estão asseguradas”. “Neste sentido, não existe diferença entre a medicação ser comprada na farmácia ou disponibilizada numa clínica médica. As vantagens são sobretudo na menor barreira na acessibilidade ao aborto”, contrapõe.

A autoridade norte-americana da saúde, a Food and Drug Administration (FDA), autorizou que a mifepristona fosse vendida em farmácias mediante prescrição médica, no entanto, para que a interrupção da gravidez seja bem sucedida é necessário um segundo medicamento, o misoprostol, algumas horas depois. “A toma de mifepristona provoca o desprendimento do embrião do útero. Entre 36 e 40 horas depois é necessário tomar outro medicamento [misoprostol] que leva à contração uterina para expulsar o material abortado. Há um protocolo de toma das duas substâncias que torna o aborto eficaz. É preciso garantir que tudo isto acontece”, explica Ana Aroso. “Esta pílula não deixa de ter alguns efeitos, não está isenta de risco. Usamos há muitos anos na Europa e os relatos de situações que correm menos bem são raríssimos, mas mesmo assim… Isso é o que mais me preocupa. Por exemplo, uma hemorragia. Uma mulher pode não fazer ideia o que é a quantidade de sangramento normal. Em Portugal, a qualquer momento do processo, a mulher pode regressar ao hospital ou centro de saúde e receber tratamento.”

Simplificar a IVG em Portugal

A legislação portuguesa prevê que qualquer mulher pode interromper, de forma livre e informada, uma gravidez até às 10 semanas de gestação - esse prazo estende-se em casos de mal-formação no feto, na presença de riscos para a saúde da grávida ou em casos de violação. A mulher deve dirigir-se aos serviços de saúde do Serviço Nacional de Saúde e marcar consulta de IVG (centros de saúde ou maternidades/hospitais com serviço de obstetrícia/ginecologia).

“Em Portugal a Lei do aborto deve ser discutida. Neste momento não reflete muitas das medidas consideradas pela OMS essenciais no acesso a ao aborto”, defende Teresa Bombas

A primeira etapa passa por uma consulta prévia, onde o procedimento é detalhado, segue-se depois um período obrigatório de três dias de reflexão. A mulher regressa ao centro de saúde ou hospital depois e toma a primeira dose de medicação e, entre 36 e 48 horas depois, toma a segunda dose. A IVG é sempre realizada por um médico, ou com supervisão de um médico, mediante o consentimento da grávida. O processo só termina quando, duas semanas depois, volta para uma terceira consulta médica de controle e planeamento familiar.

“São necessárias pelo menos duas ou três consultas e a mulher portuguesa é das que mais trabalha na Europa, portanto implica faltar duas ou três vezes ao trabalho, sendo que na primeira consulta só se explica o procedimento e as consequências”, começa por referir Ana Aroso. “Concordo como todo o procedimento é feito em Portugal, exceto com a obrigatoriedade dos três dias de reflexão após a primeira consulta. Pessoalmente, acredito que quem marca a consulta já pensou no assunto. Essa primeira consulta é uma perda de tempo para mulheres trabalhadoras que estão a tomar uma decisão difícil”, defende, sublinhando que quem sentisse necessidade dessa reflexão teria na mesma esse direito.

Similar é a opinião de Teresa Bombas, que defende uma nova discussão da lei que vigora em relação à interrupção voluntária da gravidez. “Neste momento não reflete muitas das medidas consideradas pela Organização Mundial da Saúde essenciais no acesso ao aborto. A idade gestacional limite para a IVG e o período de reflexão estão entre os pontos que considero estarem completamente desajustados da realidade da maioria dos países onde o aborto é legal e seguro”, diz, considerando ainda que aquilo que vai acontecer nos EUA é uma “medida pouco ajustada” ao contexto nacional. “Não temos problemas no acesso ao aborto medicamentoso, temos problemas no acesso ao aborto e com a burocracia que envolve o aborto.”

“Se Portugal não facilita o processo, corremos o risco de num futuro próximo estarmos num extremo e das mulheres portuguesas também nos pedirem o mesmo”, diz Ana Aroso

A ginecologista Ana Aroso admite que “mais facilmente” os três dias de reflexão deixariam de ser obrigatórios do que se alargaria para 12 semanas o prazo para a IVG. “Esta etapa dos três dias vai ter de cair num futuro próximo. Acho bem mais complicado que os médicos aceitem isso, porque às 12 semanas pode já implicar um aborto cirúrgico, ir para o bloco, fazer um procedimento invasivo”, diz. “Se Portugal não facilita o processo, corremos o risco de num futuro próximo estarmos num extremo e das mulheres portuguesas também nos pedirem o mesmo. Está nas nossas mãos que as mulheres continuem a querer vir ter uma consulta e a serem acompanhadas quando querem interromper uma gravidez. Todo este acompanhamento é muito mais tranquilizador do que numa mulher ir a uma farmácia e tomar um comprimido.”

Cada vez menos IVG e mais “cultura de contraceção”

Há mais de uma década que o número de interrupções voluntárias de gravidez realizadas em Portugal está em decréscimo. Se nos primeiros anos da sua legalização, eram feitas cerca de 20 mil IVG por ano, desde 2011 são cada vez menos. De acordo com dados da Direção-geral da Saúde, em 2021, foram feitas 11.640 interrupções, representando uma quebra de mais de 40% numa década.

“Há um declínio da IVG nos últimos anos porque a mulher portuguesa opta por fazer uma contraceção segura. Este ponto, quando comparado com a realidade da mulher norte-americana, é uma diferença flagrante”, refere Ana Aroso. “Em Portugal o começo da vida sexual acontece quase em paralelo com o começo da contraceção. Há uma adesão à contração. Mesmo comparando com o resto da Europa, as portuguesas aceitam muito melhor a pílula, embora estejamos a notar que há cada vez mais interesse em métodos contracetivos de longa duração”, continua a ginecologista, reforçando que às suas consultas chegam muitas mães com filhas de “15 ou 16 anos”. “Sabem que elas namoram e trazem-nas, não na expetativa de que eu lhes diga para não terem relações sexuais, mas porque assumem simplesmente que vão iniciar a vida sexual e não querem que engravidem”, diz, considerando que neste tipo de questões o exemplo e a influência familiar é mais preponderante do que a escola ou as aulas de educação sexual.

“Uma caixinha de preservativos é extremamente cara e os adolescentes são, por definição, um grupo que é pobre e não tem poder de compra. Os preservativos têm de ser acessíveis”

Este cenário descrito pela ginecologista vai ao encontro dos dados divulgados no ano passado com a publicação do estudo “A Educação Sexual dos jovens portugueses: conhecimentos e fontes”, que dá conta do aumento do uso da pílula entre os jovens para evitar uma gravidez indesejada. Entre elas, 26,3% usaram em 2021 para evitar uma gravidez, comparativamente aos 14,6% de 2008; entre eles foram 19,6% em 2021 e em 2008 foram apenas 9,3% que usaram este método de contraceção.

Paralelamente, refere o mesmo estudo, aumentou a prática do coito interrompido, ou seja, sem qualquer barreira de proteção, o homem pressente a ejaculação e retira o pénis e ejacula fora da vagina, enquanto o uso do preservativo diminuiu. Se em 2008 96,8% dos jovens do género masculino inquiridos garantiram ter usado preservativo na primeira relação sexual com parceiro, em 2021 foram 88,4%. Já entre o género feminino, a discrepância é menor: em 2008, 95,1% usaram, enquanto no ano passado foram 92,5%.

“Isso acontece porque uma caixinha de preservativos é extremamente cara e os adolescentes são, por definição, um grupo que é pobre e não tem poder de compra. Os preservativos têm de ser acessíveis”, defende Ana Aroso. “Temos de criar uma mentalidade em que na farmácia familiar, tal como há paracetamol ou medicamentos para descongestionar o nariz, também tem de haver preservativos ou pílulas do dia seguinte.”

Para Teresa Bombas, a redução do uso do preservativo não pode ser lida como uma diminuição do uso de métodos contracetivos. “Não significa necessariamente que estejam ser negligentes. Podem estar a usar outros métodos. A interrupção de gravidez não aumentou entre os adolescentes”, sublinha. E, por fim, deixa um alerta: “Temos de avaliar se este comportamento traduz uma não preocupação sobre o risco de doenças sexualmente transmissíveis. Neste caso, sim, temos de repensar estratégias”.

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