Sociedade

“Uber Files”: que fuga de informação é esta e o que dizem os ficheiros? E o que tem Portugal a ver com isto?

Uma investigação baseada numa fuga de informação dá a conhecer os esforços de lóbi com alguns dos principais rostos da política mundial. Os presidentes dos EUA e da França surgem nomeados, mas também há menções relacionadas com Portugal

Justin Sullivan/Getty Images

Uma investigação levada a cabo por um consórcio de jornalista revela que, afinal, tanto Uber como muitos dos conhecidos decisores políticos deste mundo sabiam que o paladino da “economia dos biscate” não estava a cumprir com as regras. Eis o que está em causa.

1. A fuga de informação

As revelações sobre as alegadas práticas de lóbi e influência da Uber têm por base uma fuga de informação composta por 124 mil documentos (entre os quais 83 mil ficheiros relativos a mensagens de telemóvel e e-mail). A informação foi recolhida e trabalhada pelo Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação (ICIJ) e diz respeito a práticas levadas a cabo entre 2013 e 2018, em 40 países – entre eles em Portugal. Este "caso" é conhecido por Uber Files.

2. O que dizem os ficheiros

Muitos dos ficheiros dizem respeito a opiniões e informações que altos responsáveis da Uber trocaram entre si ou com profissionais subalternos relativamente aos diferentes momentos e procedimentos de uma campanha de influência levada a cabo pelos responsáveis da empresa de aluguer de viagens de automóvel junto dos decisores políticos de algumas das maiores economias mundiais.

Na lista de pessoas que terão sido alvo da campanha de lóbi destacam-se o atual presidente da França, Emanuel Macron, que era na altura ministro da economia e surge nesta fuga de informação como alguém que facilitou a entrada da Uber.

Joe Biden, atual presidente dos EUA, também surge como um apoiante da causa. George Osborne, responsável com a pasta do Tesouro das Finanças do Reino Unido, também é apresentado com um “grande apoiante” – embora refira atualmente que apenas pretendia garantir a captação de investimentos para as ilhas britânicas junto das plataformas de tecnologias.

Entre os políticos mencionados – muitos deles num encontro do Forum Mundial de Davos – figuram Enda Kenny, antigo primeiro-ministro irlandês, Benjamin Netanyahu, e antigo primeiro-ministro israelita. Muitos outros terão respondido positivamente ao apelo da Uber.

Olaf Scholz, hoje chanceler alemão, mas presidente da câmara de Hamburgo na altura, surge como a exceção nestes apoios, manifestando a preocupação quanto a um ordenado mínimo para condutores que ingressam na Uber. De acordo com os ficheiros agora revelados, a Uber planeou investir cerca de 90 milhões de dólares (89,4 milhões de euros) em ações de relações públicas e lóbi – e o valor diz apenas respeito a 2016.

3. Práticas anticoncorrenciais

Além da captação de investimentos, o apoio garantido junto dos decisores políticos teve por móbil a procura manifestada pelos consumidores de vários países, que se sentiam atraídos pelos preços e pela agilidade tecnológica da Uber, face aos serviços tradicionais dos táxis.

Segundo o The Guardian, há indícios que revelam que a Uber não terá hesitado em “subsidiar” os custos das viagens, garantindo valores que não eram sustentáveis, a fim de garantir o apoio da opinião pública.

4. Ilegalidade assumida

A Uber chegou aos diferentes mercados para disputar uma atividade regulada – mas sem querer assumir responsabilidades em termos de serviço universal, requisitos de identificação de viaturas ou até segurança social e salários mínimos. Com isso, a empresa tornou-se no rosto da denominada “economia do biscate” (tradução possível para “gig economy”, que permite que qualquer pessoa disponibilize tempo, recursos ou conhecimento para a prestação de serviços através de uma plataforma sem as obrigações que geralmente são aplicadas às empresas de táxis – ou a quaisquer outras empresas que têm assalariados.

São várias as mensagens que levam a crer que a Uber sabia que estava à margem da lei, mas há uma que se torna elucidativa, apesar de motivar desculpas antecipadas pelo vernáculo em inglês: “We’re just fucking illegal” (tradução possível, sem vernáculo: “Somos pura e simplesmente ilegais”).

5. Aproveitamento dos tumultos

Sob a batuta de Travis Kalanick, que já abandonou a liderança executiva da empresa, foi aplicada uma estratégia mediática que tinha em vista reverter em favor da causa da Uber os tumultos, as manifestações e os ataques de taxistas contra motoristas da Uber. Há mesmo referências à organização de potenciais contra-manifestações. Segundo o ICIJ, os ficheiros agora revelados levam a crer que os responsáveis da Uber teriam em vista a vitimização, para garantir o apoio da opinião pública.

“Acho que vale a pena”, refere uma mensagem atribuída a Travis Kalanick. “A violência garante sucesso. E há que resistir a estes tipos, certo? Concordo que o local e o momento certo precisam de ser pensados”, refere outra mensagem revelada pelo ICIJ, e citada pelo The Guardian.

Num dos exemplos mencionados pelo The Washington Post, esta estratégia tirou partido igualmente das manifestações que acompanharam a providência cautelar solicitada pela Associação Nacional de Transportadores Rodoviários em Automóveis Ligeiros (ANTRAL) contra a Uber.

6. O que dizem Uber e Kalanick

A Uber já reagiu admitindo “erros e passos em falso”, mas demarca-se das práticas anteriores a 2017. Foi nesse ano que Travis Kalanick abandonou a direção da empresa sendo substituído por Dara Khosrowshahi, atual diretor executivo, que lidera um negócio que hoje suporta 19 milhões de viagens diárias e vale 43 mil milhões de dólares (42,68 mil milhões de euros).

“Não temos nem vamos pedir desculpas pelo comportamento do passado que, claramente, não está em linha com os nossos valores atuais”, referem, citados pelo The Guardian, os serviços institucionais da Uber.

“Em contrapartida, pedimos ao público que nos julgue por aquilo que fizemos nos últimos cinco anos e aquilo que faremos nos próximos anos”, reitera a Uber.

Travis Kalanick, o diretor-executivo que fica com o principal anátema desta história, começou por questionar a genuinidade dos ficheiros através da assessoria de imprensa, e rejeita críticas e denúncias, lembrando que a empresa foi sujeita ao escrutínio de autoridades de vários países e “com a aprovação total dos grupos da área legal, política e regulação da Uber”.