A muitos já faltará a memória. A outros, o tema terá passado ao lado no meio da avalanche informativa em que se tornou, há meses, a vacinação contra a covid-19.
Mas, a certa altura, a comunidade LGBTI interpelou Graça Freitas: se mulheres jovens não estavam aconselhadas a tomar a vacina da Johnson por terem maiores quantidades de estrogénio e de progesterona (hormonas), porque é que os homens transgénero eram chamados a tomar o fármaco?
O perigo associado estaria em causa para todas as pessoas que tivessem no momento - ou tivessem tido no passado - tais quantidades hormonais. Na verdade, esta vacina não estava contraindicada para mulheres, mas sim para pessoas que tivessem tido ação de estrogénio e de progesterona no organismo - incluindo os homens transgénero.
Na altura, a situação foi ultrapassada, aconselhando-se todos os jovens transgénero a tomarem outras vacinas, mas para Jo Rodrigues fica a memória de uma situação recente que espelha a falta de acolhimento do SNS para com a comunidade LGBTI - especialmente para com as pessoas não-binárias (aquelas que não se identificam nem com o género masculino nem com o feminino) e transgénero (as que se assumem com um género não concordante com sexo com que nasceram).
A situação fê-lo pensar em tantos outros exemplos. E aos 26 anos, Jo, no ano comum do curso de medicina, decidiu juntar o ativismo à profissão e criou a Anémona, associação formalizada esta semana, de que é presidente, para ter um papel ativo no fornecimento de cuidados de saúde e ser uma “ponte” para com o próprio SNS.
“O SNS, em teoria, é universal e gratuito. Na prática, isso não se verifica para estas pessoas. Existem barreiras a nível de discriminação, falta de formação de profissionais, listas de espera enormes, muitas vezes para situações urgentes como a saúde mental”, refere.
Ainda enquanto estudante, Jo Rodrigues realizou um estudo e comprovou que 50% das pessoas transgénero já tinham sofrido pelo menos uma vez na vida um episódio de discriminação no Serviço Nacional de Saúde. Em parte, porque os profissionais assumem estar pouco preparados.
Porque é que só convocamos mulheres para o rastreio do cancro do colo do útero?
Na estratégia para a saúde LGBTI, um plano de 2019, o primeiro volume é destinado às pessoas trans e intersexo. “Foram reconhecidos os problemas, foi construído um ‘caminho’ pelo qual as pessoas transgénero devem seguir caso queiram realizar uma transição [de sexo] médico-cirúrgica”, admite Jo Rodrigues. Mas falta caminho.
Como no caso da vacina da Johnson, são variadas as ocasiões em que se chama alguém para tratamentos ou rastreios partindo do seu género - masculino ou feminino -, não adotando no sistema quem não se designa por nenhum deles, nem quem, sendo transgénero, já fez a transição de género nos cartões de identificação, mas poderá ter um útero sendo homem. Ou vice-versa.
“Existem homens com útero, mulheres com cromossomas XY, pessoas com pénis e pessoas por vezes com ovários e testículos ao mesmo tempo”, diz Jo, para quem as pessoas terão de ser referenciadas pelo sexo de nascença e não pelo género.
“Se eu mais tarde quiser fazer um rastreio, não vou rastrear um homem nem uma mulher, vou rastrear um órgão. Isto é importante porque sabemos que há doenças, como o cancro do colo do útero, que são prevalentes e importantes de rastrear não em mulheres, mas em quem tem útero. Não estamos à procura do cancro das mulheres, estamos à procura do cancro do colo do útero”.
A Anémona defende uma dissociação de género e de sexo na saúde, por forma a terminar com uma “consequência real”: Se o sistema exclui automaticamente para este exame todas as pessoas que têm um M [de masculino] no cartão de cidadão, então vai excluir todos os homens com útero”.