Depois de uma meia hora de atraso, porque estava a ouvir uma testemunha num outro processo, o juiz Francisco Henriques chegou à sala e disse “aqui não há explicações” – e antecipou assim a postura que teria na leitura da sentença aplicada a Ricardo Salgado pelos três crimes de abuso de confiança imputados pelo Ministério Público. Percebeu-se a seguir que não ia dar explicações sobre a pena de prisão de seis anos a que sentenciou o histórico presidente do Banco Espírito Santo pela primeira vez condenado num processo-crime. E percebeu-se também que não ia dar explicações por tê-lo condenado apesar do diagnóstico de Alzheimer que o próprio Salgado assumira perante ele, semanas antes.
“Aqui não há mais explicações”, reforçou o líder do coletivo de juízes: desta vez, um aviso aos jornalistas e advogados de que não seria ele a esclarecer quaisquer dúvidas sobre o que dissesse. Perguntas? Remeteu-as para o presidente da comarca de Lisboa ou para o Conselho Superior de Magistratura.
Não foi bem um “vá queixar-se ao Totta”, como Francisco Henriques atirou há uns anos a um advogado – caso que o jornal Eco lembrou há um ano –, mas um alerta que deixou à sala do Campus de Justiça, pequena para tantos quantos queriam ouvir a primeira sentença de um processo-crime em que Ricardo Salgado era protagonista.
Um processo saído da Operação Marquês, por apropriação de 10,7 milhões de euros do Grupo Espírito Santo, mas que não resultou da derrocada do BES e do grupo familiar. Ainda assim, ali estavam os lesados antes, durante e depois da sessão, para tentarem reaver o seu dinheiro, apontando para outro culpado que não Salgado: “Os lesados pedem responsabilidades ao Banco de Portugal”, gritou um dos visados nesta segunda-feira, 7 de março.
Na sala do Campus de Justiça, o juiz não queria ouvir reações à sua decisão, mesmo que naquele pequeno espaço do quinto andar do edifício só estivessem dez jornalistas e três lesados do BES. Poucos, mas apesar disso não se encontravam cadeiras suficientes para todos os interessados: alguns lesados tiveram de ficar fora da sala por decisão da oficial de justiça e até uma jornalista, que chegou mais tarde, entrou apenas quando um dos lesados se ausentou. Havia muitos interessados em ouvir o que o juiz sentenciara a propósito do grande protagonista disto tudo – o antigo “dono disto tudo”-, que não se encontrava nas imediações: Salgado não foi à leitura da sentença e não foi diretamente para ele que Francisco Henriques falou.
A condenação
Não foi naquela sala que Salgado soube qual a condenação que lhe cabia. “Em cúmulo jurídico, o arguido é condenado a pena de seis anos de prisão”, ditou Francisco Henriques – quatro anos de pena parcelar por cada um dos crimes de abuso de confiança, seis anos de prisão ao acumular e ponderar todos eles.
Foram as palavras citadas que condenaram Ricardo Salgado à cadeia, que ainda assim está longe de estar transitada em julgado, já que há espaço para recursos e a defesa do ex-banqueiro tem ido às várias instâncias lutar por eles. O juiz não disse “pena de prisão efetiva”, o que até causou alguma dúvida entre os jornalistas, mas, não dizendo, não a decidiu. Ao contrário do que apontava a defesa, a Alzheimer não foi usado como argumento para que a pena fosse suspensa; o Ministério Público também não viu preenchidos todos os seus objetivos, já que pedira dez anos para o ex-banqueiro.
“Está feita a leitura”, finalizou o juiz. Findou a leitura, mas não a sessão.
Afinal, havia espaço para debater uma alteração de circunstâncias em que ficou determinado que Salgado iria ficar proibido de se ausentar para o estrangeiro sem uma autorização do tribunal, ficando mesmo sem o passaporte. Ainda no verão passado esteve a visitar a filha na Suíça, e na Sicília, em Itália: nessas deslocações, avisou o tribunal de que ia sair; agora não o pode fazer, precisa de uma autorização.
Fora do edifício, e após a sessão, o seu advogado, Francisco Proença de Carvalho, não teve dúvidas, quando os jornalistas lhe perguntaram se a proibição era causada pela fuga de João Rendeiro. “Bom, os senhores jornalistas terão a resposta. Eu não tenho dúvidas que sabem que é isso mesmo”. Para a defesa de Salgado, a postura de Rendeiro, ao fugir do país para não ser preso, prejudicou o ex-líder do BES; já o antigo presidente do BPP não se cansa de dizer que Salgado foi um dos causadores da sua desgraça.
A defesa
Nos últimos oito anos, Salgado tem tentado defender-se das várias fontes de acusações, algumas destas já provadas em tribunal: do Banco de Portugal (quatro processos de contraordenação que o condenaram a coimas de 8 milhões de euros, 4 milhões das quais ainda alvo de recursos, 4 milhões já não recorríveis, mas que continuam sem ser pagas e que o proíbem de ser banqueiro); da Justiça (além destes crimes, o Ministério Público insiste nas acusações de corrupção na Operação Marquês e a instrução do Universo Espírito Santo já começou); e da opinião pública.
Se oito anos ficaram para trás, seis são aqueles que Salgado tem de estar preso, segundo o coletivo de juízes. Vai haver recurso porque “a condenação não revela o que se passou no julgamento” e a “condenação com pena efetiva de alguém que sofre de doença de Alzheimer é uma condenação que, daquilo que parece a Lei e também o humanismo e dignidade humana, não é aceitável”, justificou Proença de Carvalho. A doença foi um dos factos provados pelo tribunal relativamente a Salgado, que anda a escrever há anos as suas memórias. Aguardam conclusão, agora dificultada pelo estado de saúde. O ex-banqueiro ainda quer dar mais explicações.
Proença de Carvalho, no final, ainda quis citar um nome: o de Mário Soares. Era dele uma afirmação que é o leme da defesa: “Só é vencido quem desiste de lutar”. Ao ex-presidente da República, Salgado já agradecera em dezembro de 2014, quando no Parlamento disse recordar com “gratidão” o apoio de Soares e de Cavaco Silva pelo regresso da família Espírito Santo a Portugal após as nacionalizações que se seguiram ao 25 de abril. Foi nessa ida ao Parlamento que Salgado fez uma citação, daquele que dizia ser um “velho provérbio chinês”: “O leopardo, quando morre, deixa a sua pele e um homem, quando morre, deixa a sua reputação”. Em agosto desse mesmo ano, o BES caiu com estrondo.