Assim que começou a utilizar seringas e agulhas, Ernestina Sousa, que tem 68 anos e é diabética, percebeu que seria perigoso colocá-las no caixote do lixo que tem em casa. “E se as pessoas que vêm recolher o lixo se picam, tal como também já me aconteceu?” Para todos os efeitos, pensou nessa altura, “trata-se de uma agulha que foi utilizada por outra pessoa e pode estar contaminada com qualquer doença”. Sem resposta para as suas dúvidas, procurou saber na farmácia onde vai habitualmente, perto de sua casa, na Amadora, se podia entregar as agulhas juntamente com as caixas vazias de medicamentos que costumava levar, mas disseram-lhe que não recebiam esse tipo de resíduos.
Mais ou menos pela mesma altura, foi visitar um dos filhos a França e voltou com uma solução para o problema: um recipiente igual ao que o jovem, também diabético, utilizava para depositar agulhas. “Ele tinha dois recipientes em casa onde ia colocando as agulhas, para depois entregar na farmácia, e ofereceu-me um.” Ernestina Sousa começou a seguir o exemplo do filho, sabendo, no entanto, que quando o recipiente estivesse cheio iria ter o mesmo problema: o que fazer com as agulhas? Em boa hora surgiu um projeto nacional de recolha de agulhas – a que a Farmácia da Igreja, a tal onde costuma ir, aderiu – e o assunto deixou de a preocupar. Junta ao seu relato uma certeza: “Fazia muita falta uma iniciativa assim.”
O projeto “Seringas só no agulhão” foi lançado em 2019 pela Associação de Farmácias de Portugal (AFP). Manuela Pacheco, presidente da associação, explica a importância da iniciativa lembrando os riscos de ter agulhas e seringas misturadas com o lixo comum, “com as cascas de batatas e todos os resíduos que produzimos em casa”, como diz. “Os trabalhadores da limpeza podem ficar feridos quando estão a recolher o lixo e a transportá-lo para as estações de tratamento de resíduos.” Na verdade, acrescenta, “qualquer pessoa pode magoar-se com as agulhas utilizadas, incluindo crianças, porque os sacos do lixo nem sempre são colocados nos contentores”. “Muitas vezes ficam simplesmente no chão.”
Há também o risco de contágio e o prejuízo para o ambiente, com a “contaminação dos solos e das linhas de água”. “Algumas pessoas colocam as agulhas que utilizaram em garrafas de água, mas vale o que vale. No final, o lixo vai todo para o mesmo sítio, não sendo as agulhas separadas e incineradas”, tal como acontece com os materiais cortantes produzidos em hospitais e restantes unidades onde são prestados cuidados de saúde. A atual legislação obriga, aliás, a que este tipo de resíduos, considerados resíduos do grupo IV segundo a classificação em em vigor (neste grupo estão também cadáveres de animais que foram utilizados em experiências de laboratórios e produtos químicos e fármacos rejeitados) sejam incinerados, recorrendo-se a câmaras de combustão instaladas nas várias unidades de tratamento que funcionam no país. “Estas agulhas utilizadas em contexto doméstico – seja por diabéticos, seja por pessoas que fazem medicação injetável para o tratamento de outras doenças ou tratamento de fertilidade – deveriam ser recolhidas e tratadas devidamente, para proteção de todos nós”, sublinha Manuela Pacheco.
O projeto criado pela AFP pretende dar resposta a esta necessidade, mas são várias as dificuldades de implementação. Até ao momento, apenas 14 farmácias aderiram, a maioria na região norte do país, onde a associação tem sede. A pandemia obrigou a suspender os planos de alargar a iniciativa ao resto do país — alargamento este que, de resto, está dependente de verbas.
Segundo Manuela Pacheco, o Governo mostrou “interesse” no projeto, “mas de um dia para o outro apareceu a covid-19 e ficou tudo na gaveta”. “O nosso objetivo é que o projeto seja reconhecido pelo Governo central para que possa ser implementado a nível nacional, resolvendo problemas com que os cidadãos se confrontam no dia a dia. As pessoas não sabem onde colocar as agulhas que utilizam”, diz a presidente da associação, adiantando que também foram feitos contactos com autarquias. Por enquanto, está otimista: “Muitas câmaras estão certamente interessadas no projeto, até pela vertente ecológica e ambiental. A iniciativa é bem-vinda.”
Manuela Pacheco explica que o projeto foi criado depois de um episódio concreto. E recorda: ” Uma das nossas associadas levou um saco com seringas e agulhas para uma assembleia municipal e perguntou aos autarcas onde deveria colocar todo aquele material.” Explicou que estava a fazer um tratamento de fertilidade “e não sabia o que fazer a todas aquelas agulhas”. Quando a AFP teve conhecimento da situação, “fez-se luz”. “Pensámos: ‘Somos nós que temos de fazer alguma coisa'”. Até ao momento, a associação recolheu cerca de 700 mil agulhas em farmácias.
“As pessoas compreendem que não devem deitar as agulhas no lixo mas não sabem o que fazer”
Francisco Gautier, diretor técnico da Farmácia da Igreja, na Amadora, assegura que tem havido “muita procura”, apesar de o projeto só ter sido implementado na farmácia há cerca de “cinco, seis meses”. “É um serviço que está muito em falta. As pessoas compreendem que não devem deitar as agulhas para o lixo normal mas não sabem o que fazer. Muitas acabam por encontrar soluções como colocar as agulhas em garrafas de plástico.” Concorda que seja o Governo a financiar o processo, “porque nem todas as farmácias ou autarquias podem estar dispostas a assumir os custos”, o que criará “desigualdades”.
Todos os dias vão para o lixo entre 240 a 300 mil agulhas. As contas são feitas por João Raposo, diretor clínico da Associação Protetora dos Diabéticos de Portugal (APDP), com base no número de pessoas com diabetes tipo 1 e 2. Também são depositados no lixo comum outros produtos utilizados por pessoas com diabetes, como lancetas e tiras de teste para medir os níveis de glicose no sangue. Estas últimas “são pelo menos duas vezes o número de agulhas”. “Idealmente, isto seria implementado a nível nacional. Os circuitos dos medicamentos usados e fora de prazo, assim como das agulhas e seringas, estão definidos. Só falta esta questão ser considerada um problema prioritário.”
João Raposo também garante que ” quase todos os dias há pessoas a perguntar onde devem colocar as suas agulhas” e a questionar “porque não se faz mais e por que razão não tem o país uma estratégia para isto e para resolver o problema de uma vez por todas”. “Sentem-se incomodadas por ter de colocar no lixo, juntamente com os restantes resíduos domésticos. O potencial de infeção é baixo, mas não é desprezível se multiplicarmos o número de agulhas que cada pessoa utiliza por muitos milhares.” Em termos ambientais, também há um impacto, “porque estamos a misturar materiais com plástico e metal”.
“Não temos soluções que abranjam todo o território”
A farmácia da APDP é outra das que implementaram o projeto de recolha de agulhas. Enquanto mostra o pequeno contentor onde estes resíduos são depositados, Filipa Cabral, diretora técnica da farmácia, confirma as preocupações dos utentes. “É um tema muito recorrente nas redes sociais, em grupos de diabéticos. As pessoas estão cada vez mais preocupadas com a questão ambiental.” Embora o projeto já aqui esteja implementado há algum tempo, continua a ser “limitado”, uma vez que se trata de uma farmácia que dá resposta aos sócios da associação. ” Não somos propriamente uma farmácia de bairro, não temos essa proximidade.” Seria importante que outras farmácias seguissem o mesmo exemplo, “mas é impossível assumirem os custos”. “A gestão deste tipo de resíduos é feita por empresas privadas, o que significa que é preciso pagar muito por este serviço. E enquanto não houver organismos públicos que se responsabilizem por isto, será sempre caro.”
Segundo Filipa Cabral, há centros de saúde que disponibilizam “contentores pequeninos” aos utentes e depois recebem-nos, trocando por recipientes vazios, “mas não há uma regra”. O que faz com que os utentes se “questionem porque é que as pessoas são tratadas de maneira diferente”. “Parece-me que funciona tudo na base do improviso. Não temos soluções que abranjam todo o território e toda a população. É preciso que alguém se responsabilize por este serviço de maneira a torná-lo gratuito para a população.”