Sociedade

Viagem ao novo mundo do metaverso. Como vamos viver em universos paralelos

Na nova geração da internet, a Humanidade será tentada a dar o salto para o mundo virtual. Salas de jogos e concertos, mansões, réplicas de empresas ou galerias de arte já começaram a disseminar-se fora da realidade

Era o primeiro concerto do grande Vladimir Horowitz na União Soviética passados 61 anos de exílio. Sem surpresas, o Auditório do Conservatório de Moscovo encheu-se de governantes, diplomatas e dezenas de estudantes que passaram a barreira de segurança, à falta de convite para assistir ao histórico momento marcado para 20 de abril de 1986. Os áudios e os vídeos haveriam de confirmar a imortalidade do momento, mas só em 2015 surgiu um piano capaz de replicar sozinho o ataque e a intensidade de cada uma das notas tocadas na histórica interpretação de “Träumerei”, de Schumann, que levou parte da audiência às lágrimas. De súbito, a tecnologia tornou as coordenadas de tempo e espaço relativas; e a fronteira entre virtual e real ruiu. De súbito, surgiu mais uma prova de que o metaverso é possível.

“Com a tecnologia Spirio passámos a poder desfrutar de concertos de pianistas famosos no nosso piano de casa”, explica Tom Hoffarth, responsável pela linha de pianos Spirio da Steinway & Sons. Em 2015, não faltavam instrumentos robotizados que imitavam, de forma genérica, a Humanidade quando se põe a fazer música. Mas com os pianos que tocam sozinhos, a Steinway conseguiu um feito bem diferente: de ora em diante seria possível uma máquina replicar o estilo musical de um pianista e garantir um valor acrescentado para uma representação digital da realidade. Com base nestes princípios, já começaram a ser testados, nos EUA, os primeiros concertos transmitidos em direto entre dois pianos dotados desta tecnologia.

Tom Hoffarth não exclui que a evolução possa vir a beneficiar de tecnologias que já são apontadas ao metaverso: “Há um grande potencial para o uso de soluções de realidade virtual ou hologramas dos pianistas.” Os pianos que replicam pianistas estrea­ram no mercado mundial sem uma única menção ao metaverso — e de algum modo esse desencontro está em linha com a primeira aparição do termo no romance futurista “Snow Crash” — “Samurai: Nome de Código” (Editorial Presença), na versão portuguesa —, de Neal Stephenson, que surgiu em 1992 quando não havia tecnologia que conseguisse reproduzir o conceito. O enredo tem por base as aventuras de um entregador de pizas que vive entre realidade e mundo virtual até deparar com um vírus de origem digital que bloqueia o cérebro dos humanos.

O sucesso haveria de se estender bem para lá da venda de direitos para a realização de um filme e dos mais de 125 mil exemplares do livro que foram vendidos no primeiro ano. Passados 30 anos, Adidas, Facebook, Microsoft, Porsche, Nike, Warner, Sony, Visa, Walmart iniciaram a corrida ao metaverso. A Grayscale, nome de referência na análise dos criptoativos, justifica a euforia com uma estimativa: os mundos virtuais já têm capacidade para movimentar o correspondente a mil milhões de dólares anuais (€870 mil milhões).

Como uma profecia dos tempos modernos, o metaverso de Stephenson vai mesmo acontecer — e se não for pelo arrojo do conceito filosófico, será seguramente porque, com tanto dinheiro e nomes fortes, alguma coisa vai ter de acontecer. E isso significa que, um dia, vamos mesmo transitar em contínuo entre realidade palpável e plataformas tecnológicas que combinam animação, realidade aumentada, realidade virtual ou holografia para gerar cenários que permitem interagir com avatares ou figuras realistas, criptomoedas e artefactos digitais transacionáveis.

“As pessoas vão deparar-se com uma gradação que vai do mundo natural a 100% ao mundo totalmente virtual, que tem regras próprias”, prevê Mário Valente, pioneiro da internet em Portugal, responsável pela informatização da justiça, e fã confesso de investimentos em criptoativos e novelas futuristas.

A segunda vida

O real é o que vemos ou aquilo que precisamos de ver a cada momento? Decentraland, OVR, Upland e Sandbox já começaram a tentar responder à questão com mundos virtuais, percorridos por avatares, e onde é permitido comprar terrenos, e construir casas, estradas, carros, roupas ou adereços que, apesar de serem bens digitais, são revendidos em segunda mão. A Sandbox tornou-se o projeto mais famoso, mas a iniciativa mais ousada veio da OVR, quando decidiu lançar réplicas de cidades que permitem comprar edifícios e terrenos que funcionam como gémeos digitais de espaços que existem na realidade. Um pouco como o Second Life tentou fazer no passado.

Na primeira década do século, Philip Rosedale descobriu da forma menos agradável o que significa ter razão antes do tempo, com o mundo virtual Second Life. Durante um par de anos, revistas, jornais e canais de TV acompanharam o projeto a par e passo — e os anúncios de investimento amontoa­ram-se numa lista que integrava General Motors, Adidas, Dell, Warner, Microsoft, 20th Century Fox — ou até a presidência portuguesa. Apesar do apoio institucional, o mundo virtual acabou por não conseguir ganhar escala. E, no final da primeira década do milénio, já havia relatos que comparavam o mundo virtual idealizado por Rosedale e pela Linden Lab a uma feira popular que havia sido abandonada devido aos custos de manutenção e apenas tinha avatares com comportamentos menos convencionais entre os visitantes.

Passados 12 anos, que razão há então para insistir na bolha do metaverso? “Até Mark Zuckerberg percebeu que a Internet 2.0 morreu”, acrescenta Artur Goulão, diretor de tecnologias da Exclusible, startup que tem vindo a desenhar experiências que envolvem edifícios e artefactos digitais no metaverso a pedido de empresas e privados.

Tanto em Silicon Valley como em Wall Street, o rebentamento de bolhas especulativas é encarado como uma dor de crescimento inevitável. Aconteceu quando a crise das dot.com pôs ponto final na primeira geração da Web no ano 2000, e está a repetir-se nos dias que correm com o declínio de redes sociais e apps que deram fama à Web 2.0, apesar de não garantirem a migração de dados pessoais ou de não reconhecerem a identidade digital usada nos serviços concorrentes.

Mark Zuckerberg (em versão avatar, à esq.) está a apostar tudo no metaverso. A Microsoft também já começou a trabalhar no metaverso, e tudo leva a crer que a Apple e a Google sigam o mesmo caminho

A geração Web 3.0 já lançou o prenúncio do fim dos ecossistemas fechados — e terá sido determinante para levar Mark Zuckerberg a apostar tudo no metaverso, como escapatória da internet fechada e do cerco montado das autoridades regulatórias e da previsível erosão bolsista. E não será o único grande projeto seguramente. A Microsoft também já começou a trabalhar no metaverso, e tudo leva a crer que Apple e Google sigam o mesmo caminho. O próprio Rosedale cedeu ao novo apelo dos mundos virtuais e regressou ao Second Life como conselheiro estratégico.

Fred Antunes sabe que a Real Fevr não tem a dimensão destes projetos, mas decidiu que vai avançar com o lançamento de metaverso até ao final do ano. “Vamos vender terra!”, anuncia o líder da Real Fevr. Fevrse é o nome do mundo virtual, que haverá de ser retalhado e vendido para exploração de terceiros como um novo continente pronto a colonizar.

Além da venda de terrenos virtuais, o Fevrse deverá cobrar entre 1% e 3% das transações que suporta. Fred Antunes acredita que não faltarão atividades comerciais que contribuam para esta coleta. “Imagine-se que um craque como o Cristiano Ronaldo compra um terreno num metaverso e cobra bilhetes às pessoas que querem ir lá vê-lo. Vão ser milhares de pessoas! É o avatar, mas é também ele que lá vai estar”, descreve.

O grande criptobazar

A Real Fevr até pode ter a pretensão de controlar transações efetuadas dentro do metaverso que criou, mas não tenciona impedir os utilizadores de irem ao denominado “mercado secundário” para vender terrenos, edifícios, adereços, galerias de arte, ou até salas de jogos e concertos que foram criados para operar no mundo virtual do Fevrse. E nesses casos há uma probabilidade considerável de zarparem rumo ao OpenSea, o pujante mercado que começou a operar em 2017 com artefactos digitais, evoluiu com obras de arte, jogos e música, e hoje conta com uma secção dedicada à transação de terrenos e edifícios nos diferentes mundos do metaverso e fundos de investimento alavancados em bens virtuais que estão abertos à participação de qualquer internauta.

Quem achou que a ideia de vender objetos digitais toscos e pixelizados era uma brincadeira de crianças, tem agora uma oportunidade para emendar a previsão. Em janeiro de 2022, Devin Finzer, líder desta superloja virtual, anunciou que o OpenSea suportou transações em criptomoedas avaliadas em mais de €3,06 mil milhões.

Artur Goulão também conhece bem o circuito dos bens digitais em segunda mão. Depois de investir €1,8 milhões em três grandes parcelas do mundo virtual Sandbox, a Exclusible garantiu retorno com lucro com a venda de 150 villas de uma dessas três parcelas. “E houve villas que foram vendidas no OpenSea ao dobro do preço, pouco depois de nos serem compradas”, recorda.

Há uma segunda parcela de terreno virtual que a Exclusible conta vender depois de a dividir em 32 villas, a preços de 25 a 65 ethereum (de €65 mil a €170 mil). Para evitar interpretações erradas, Artur Goulão lembra que a Exclusible não é ateliê de arquitetura nem agente imobiliária, mas sim uma marca que promove um estilo de vida ao desenvolver experiências no mundo virtual. Aparentemente, o mercado compreende o posicionamento: as villas mais caras da segunda parcela detida pela startup já foram vendidas. E há mesmo um caso que recorreu a um arquiteto famoso.

“A maioria das pessoas já passa mais de oito horas no telemóvel e no computador. Essas mesmas pessoas já estão dispostas a pagar por filtros que melhoram as fotografias no Instagram. E acredito que vão estar dispostas a pagar também pelo uso de itens no metaverso”, acrescenta.

Ainda que a título individual, Mário Valente também investiu na compra de um lote de metaverso, mas rejeita passá-lo a novo proprietário se não lhe derem 10 ethereum, que atualmente correspondem a €26 mil. “Se ninguém comprar, construo um prédio e vendo apartamentos (digitais)”, diz.

Em Silicon Valley e Wall Street, o rebentamento de bolhas especulativas é encarado como inevitável. Está a repetir-se com o declínio de redes sociais

Nesta nova versão digital de especulação imobiliária, ninguém consegue rivalizar com a fama do rapper Snoop Dogg, depois de investir €450 mil numa parcela de terrenos virtuais do Sandbox que tanto poderão ser explorados com edifícios e experiências que juntam vários avatares, como para mostrar como vive na sua mansão virtual, ou até para transmitir concertos. Universal e Warner também já confirmaram que deverão “abanar” o circuito da música no metaverso, mas possivelmente ainda não conseguem levar vizinhos a aceitarem pagar 500 mil dólares para garantir a proximidade do rapper. Como na realidade palpável, a fama vale dinheiro no metaverso.

“Se há uma bolha especulativa? Não sei. O que sei é que todas as coisas que valorizam muito estão associadas a grandes investimentos. Se este movimento se inverte, pode ser então trágico, mas não acredito que impacte diretamente a economia real”, prevê Afonso Eça, professor na Escola de Negócios e Economia da Universidade Nova de Lisboa.

O risco só deverá tornar-se real se os bancos centrais não forem bem sucedidos a lançar criptomoedas, “e as pessoas começarem a preferir usar criptoativos emitidos por privados em grande escala”, refere Afonso Eça. “Nesse cenário, sim, passa a haver um risco sistémico para a economia”, acrescenta.

A uma escala bem menor, Guilherme Silveira, especialista de cibersegurança rendido aos criptonegócios, também já se deparou com um ou outro dissabor virtual. Ainda não conseguiu esquecer a oportunidade de comprar a 300 dólares terrenos do Decentraland que “valem hoje mil vezes mais”. Também teve de aprender a lidar com colegas e amigos que não compreendiam a razão de gastar dinheiro numas asas para usar em avatares do Second Life. E é com desassombro que diz que já investiu numa alpaca e num hambúrguer de formato digital. Nos próximos tempos conta usar as criptotecnologias para desenvolver o negócio dos certificados de auditoria de segurança, e naves espaciais para uso em diferentes mundos virtuais.

Os dois novos projetos são apresentados com toda a convicção, mas Guilherme Silveira faz questão de separar as águas: “Também há muito lixo e muitos esquemas”, refere.

Quantos dos negócios de nova geração estão a fugir às autoridades e à banca tradicional? No extremo leste da União Europeia, o governo estónio começou a preparar-se para o que aí vem com a implementação de uma identidade digital obrigatória que lhe permitiu chegar às 1,4 mil milhões de assinaturas digitais. Mas há mais: hoje há cerca de 20 mil empresas criadas em menos de 20 minutos em regime de residência eletrónica. Através desta via, o Estado estónio conseguiu captar mais de €31 milhões em impostos — boa parte deles pagos pelos 40% de e-residentes que vêm de outros paí­ses da UE.

“Se queremos que o metaverso seja uma extensão da realidade, então temos de aplicar o mesmo quadro legal da realidade”, avisa Siim Sikut, diretor-geral de informação (CIO) do governo estónio. A conversão entre criptomoedas e moedas convencionais é um dos problemas apontados. “Ainda não se sabe bem o que é que o Banco Central Europeu quer fazer, mas sabe-se que está sob uma grande pressão para que faça algo”, acrescenta.

O digital em segunda mão

Quem assistiu à invasão dos computadores ZX Spectrum nos anos 80 ainda poderá estar a tentar perceber o que leva alguém a pagar o correspondente a €2,5 milhões pela primeira publicação feita no Twitter — mas tudo é explicável pelas regras históricas da economia. No metaverso quem não tem meios de produção, recursos ou tempo tem de comprar. E quem não tem como comprar o que há à venda no mundo digital não tem outra alternativa senão prestar serviços, aprender a produzir itens digitais, ou descobrir onde recolher representações digitais que podem ser usadas como criptomoedas (os tokens). Tudo decorre como um jogo — mas os ganhos e as perdas podem ser bem reais.

“O mundo físico já está todo conquistado, e por isso faz sentido ir para o mundo virtual. Só que o mundo físico tem limites, enquanto no metaverso não há limites e impôs-se o princípio da escassez, caso contrário as coisas deixavam de ter valor. Além disso, foram desenvolvidas tecnologias que garantem a identidade e direitos de propriedade”, explica Diogo Mónica, diretor-executivo da Anchorage, empresa sediada nos EUA que já conta com um banco credenciado em criptoativos.

A mesma geração que estreou o ZX Spectrum também poderá ter tido dificuldade em levar a sério o anúncio do novo mundo virtual que o grupo do Facebook apresentou, precisamente no mesmo dia em que passou a chamar-se Meta. Avatares, identidades digitais, ou até holografias que juntam duas pessoas distantes num concerto transmitido de um terceiro local são ainda encarados pelos mais velhos como demasiado futuristas senão mesmo fantasiosos — mas para a geração sub-30 que cresceu com o “Minecraft” e ganhou hábito aos jogos que transacionam itens virtuais para vencer os adversários, é apenas mais um capítulo na evolução humana que se avizinha. E é a este último segmento que a Meta anseia chegar, através da plataforma Horizons e de outras que provavelmente há de lançar no futuro.

Os metaversos vão ter especialistas em merchandising e direitos de autor, mas também advogados e juristas, ou até com papéis de moderador ou polícia

Se as holografias ainda terão de passar a prova de conceito, à realidade virtual faltam ainda uns óculos mais amigos do utilizador. E também as telecomunicações terão de fazer afinações. “Os operadores vão ter de criar redes mais inteligentes que sabem adaptar os recursos ao uso que está a ser feito no momento pelos diferentes utilizadores”, explica Jorge Graça, diretor de Tecnologias da NOS.

Com ou sem redes inteligentes, a Meta almeja a primazia, mesmo que vá contra a tese dos especialistas que garantem que não vai haver um metaverso único para todos, mas sim vários metaversos. “Por alguma razão, a Microsoft aceitou pagar mais de 68 mil milhões de dólares pela produtora de jogos Activision Blizzard”, lembra a Mário Valente.

A Microsoft, que também detém o “Minecraft”, pode justificar o investimento com a necessidade de dar músculo ao negócio das consolas Xbox, mas é quase dado adquirido que, tarde ou cedo, vai aproveitar a compra da produtora de jogos para se expandir no metaverso. Antes deste grande investimento, a Microsoft já começou a testar software de gestão que facilita a interação visual com repositórios de dados, salas de reunião com avatares ou até gémeos digitais.

“Estamos a acrescentar mais mundo à realidade”, garante Miguel Caldas, arquiteto de Soluções Cloud da Microsoft Portugal.

Donos daquilo tudo

E possivelmente nenhum destes negócios florescentes seria viável sem tecnologias capazes de garantir a genuinidade. Non-Fungible Tokens (NFT) é o nome da tecnologia que garante que um espécime digital é único. Esta proteção, que tem por base cifra, não impede a cópia, mas permite distinguir com fiabilidade qual é a versão original.

Como têm por base a tecnologia de blockchain, os NFT não só facilitam a descentralização como permitem que várias máquinas colaborem em diferentes tarefas de cálculo, uma vez que usam protocolos universais. Além disso, os NFT permitem definir modalidades comerciais e os direitos de propriedade que poderão ser atribuídos a cada item digital. E esta é a maior salvaguarda que hoje existe para o ecossistema financeiro virtual. Tudo o resto varia consoante a especulação.

“São estas tecnologias que garantem que um avatar pode sair do ‘Roblox’ para ser vendido no ‘Minecraft’ e que os valores transacionados são válidos em todas as plataformas”, explica Mário Valente.

A lógica da descentralização também produz efeitos diretos na governação através dos DAO (sigla em inglês de Organização Autónoma Descentralizada), que são o que mais parecido existe com uma lei geral dos metaversos. “A gestão de uma cidade não pode ser ditatorial; tem de ser capitalista e tem de ter democracia direta. Tem de ser o povo a decidir”, defende Fred Antunes, sobre as regras que pretende aplicar ao mundo virtual Fevrse.

Como em todas as colonizações, as instituições ainda estão longe da consolidação. “Os metaversos vão ter especialistas em merchandising e direitos de autor, mas também vão precisar de advogados e juristas, ou até de intervenientes com papéis de moderador ou polícia”, antevê o líder da Real Fevr.

O metaverso pode ter reabilitado a lógica de “mundo à parte, com leis à parte” da internet dos anos 90, mas possivelmente essa sensação só deverá perdurar enquanto as autoridades de carne e osso não conseguirem assumir o controlo.

“As representações digitais levantam questões sobre o tratamento de dados pessoais, e também de soberania. Será que vão ser 10 jovens programadores na Califórnia que vão decidir como é que deve ser representada a fronteira de Portugal e Espanha e Olivença (nos mundos virtuais)?”, frisa Jorge Graça, dando um exemplo dos conflitos que podem ser gerados pelas novas fronteiras que separam real e virtual.

Nem tudo o que acontece no metaverso, ficará no metaverso — e Megwin White, sexóloga e diretora de Educação da Satisfyer, admite que o virtual acabe mesmo por produzir efeito nas relações pessoais. “Se um avatar leva alguém a ser mais confiante e desinibido na forma de ver o seu corpo, então não vejo porque é que a pessoa não há de usar o avatar. Mas também é importante que essa pessoa não se esqueça do momento em que tira os óculos de realidade virtual e tudo acaba. O que é que vai sentir nesse momento?”

Como muitas outras marcas do segmento, a Satisfyer desenvolve dispositivos de estimulação sexual que permitem o controlo remoto através da net. E, à semelhança da venda de itens digitais, convém não subestimar a força da indústria do sexo: foi devido à pornografia que as antigas cassetes de vídeo adotaram o formato VHS; e foi devido à pornografia que se inauguraram os primeiros sistemas de pagamentos na internet. Nos dias que correm, a procura de conteúdos pornográficos chega a totalizar entre 13% e 25% das pesquisas na net.

Em paralelo com o tradicional consumo de vídeos, continuam a aumentar as visitas a salas com mulheres e homens que são pagos para exporem o corpo enquanto estimulam outras pessoas com recurso a dispositivos ligados à internet. Mesmo que choquem parte da população, também estas evoluções tecnológicas fazem parte do metaverso. E não adianta ter dúvidas que o ímpeto do lucro vai aplicar-se a outras tecnologias: se os filmes de realidade virtual que colocam o utilizador num cenário de pornografia conseguirem captar as receitas desejadas, o resto da indústria das tecnologias e do cinema acabará sem delongas por superar as barreiras técnicas que já são conhecidas.

“Os Hololens ainda são demasiado grandes para andar na rua com eles. E os Glass da Google eram muito interessantes, mas tinham pouca autonomia nas baterias e as funcionalidades de pesquisa de informação eram limitadas”, explica Miguel Caldas.

Às limitações técnicas dos óculos juntam-se outras relacionadas com a produção de conteúdos em 3D, ou com a articulação entre dois ou mais cenários. “Se usar óculos de realidade virtual para ver o que se passa nos vários pavilhões da FIL, será que terei também de deslocar a minha pessoa, apesar de estar em Aveiro? E se realmente tiver de deslocar o meu corpo para me movimentar no cenário transmitido pelos óculos, o que garante que não choco com uma parede? Nada disto tem ainda solução”, descreve Rui Aguiar, professor da Universidade de Aveiro.

Na realidade aumentada, que sobrepõe imagens nas lentes sem tapar o campo de visão, as oportunidades de negócio são um pouco mais auspiciosas, como já confirmou a NexReality depois de se estrear com um primeiro ensaio que envolveu equipas de reparação e manutenção de equipamentos da EDP, que recebiam, remotamente, dicas e informação de especialistas através de óculos que transmitem gráficos e informação através da internet. Depois deste primeiro projeto, seguiu-se o desenvolvimento de soluções para o turismo que permitem adicionar contexto e elementos gráficos às imagens que vão sendo captadas pelo telemóvel ou pelos óculos de realidade aumentada. E mais recentemente deu-se a entrada no sector da saúde.

“Temos a correr um projeto com a Fundação Champalimaud que permite indicar através dos óculos os dados volumétricos de um tumor, para ajudar o cirurgião a escolher a localização precisa da incisão”, informa Luís Marques, gestor de pré-vendas da NextReality.

O mesmo princípio que leva o metaverso a expandir-se para lugares e objetos do dia a dia tanto abre caminho a ideias de negócio virtuosas como a conflitos. “Será que uma marca pode ter publicidade associada a imagens da Praça do Comércio ou será que os óculos vão mostrar a história do local antes do Terramoto de Lisboa, porque o Governo controla o que pode ser feito com os óculos naquele local?”, questiona Luís Marques.

O modelo de sobreposição de mensagens virtuais começou a explorado pelo metaverso da OVR em monumentos e mobiliário urbano de algumas das cidades mais famosas, mas o expoente maior da complexidade só chegará com a entrada em cena da holografia, que já começou a ser preparada por empresas como a Portl, que tem por base grandes projeções que dão a sensação de volumetria em portais à escala real.

Hélder Crespo, professor da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto (FCUP), prefere não se pronunciar sobre a tecnologia da Portl, mas mantém o otimismo. “Ainda não há a tecnologia necessária para produzir imagens holográficas a pairar no ar”, refere sem deixar cair o otimismo para os próximos anos: “Há mercado para isso, e acredito que é algo que poderá vir a ser desenvolvido recorrendo a técnicas de laser e ótica.”

A confirmar-se a previsão, talvez já não falte assim tanto para o lançamento da holografia de Horowitz a tocar “Träumerei”.