No parapeito da chaminé está uma pequena bíblia. O tempo trouxe àquelas folhas uma cor amarelada, o uso deixou-lhe as pontas rasgadas. A lombada está gasta de há tanto tempo o livro estar aberto entre as páginas 520 e 521 - são os Salmos, capítulo 22 ao 25, “oração por auxílio divino”. Na casa com apenas um quarto vivem oito pessoas: os pais Bruno e Susana Vaz, de 44 e 34 anos; os filhos Maísa, Yolene, Miguel, Daniela, Tiago e Davi. Nenhum dos adultos tem trabalho e o senhorio deu-lhes até ao final do mês para saírem.
“Já estamos a viver da caução. O senhorio diz que podemos ficar mas, claro, só se pagarmos a renda. Nós não temos dinheiro.” Bruno não se lembra de viver sem trabalhar. “É o que mais preciso: um emprego.” “Isso e a ajuda com os documentos”, interrompe Susana - ambos são angolanos e esperam a regularização em Portugal. Não pedem dinheiro, comida ou roupa para os filhos embora precisem. “Só quero uma vida normal como qualquer pessoa”, continua ele.
Susana é crente e é a fé que lhe vale. É pelo “profeta e estes anjinhos que tenho ao colo” que faz promessas e juras de que nunca pensou estar a viver nestas condições. No único quarto da casa montaram um varão com uma cortina para dividir o espaço: de um lado o beliche com duas camas individuais onde cabem quatro, do outro um berço para os gémeos e uma cama que parece de casal. “Tivemos de improvisar”, diz Bruno enquanto levanta a manta que tapa o colchão da cama. Afinal é apenas um colchão individual encostado a um amontoado de coisas macias que o faz parecer muito maior do que realmente é.
Há duas mantas presas à janela por molas para impedir o frio de entrar. Esta segunda-feira, com o dia de sol e aumento das temperaturas, já não escorrem gotas de água pelas paredes brancas cheias de verdete e bolor. “Os miúdos andam sempre engripados, tenho medo que isto lhes cause alguma doença”, diz Susana.