É o suicídio uma marca específica dos homens ou das mulheres? Se olhássemos para a fauna humana apenas pelo buraco da fechadura da arte, poderíamos ficar com a impressão de que o suicídio é uma característica feminina. Pensem, por favor, em duas personagens femininas representativas do grande romance oitocentista? É difícil encontrar duas mais significativas do que Emma Bovary e Anna Karenina. Pois bem, Flaubert e Tolstoi desenharam os seus arquetípicos do feminino a partir do suicídio. Antes e depois de Emma e Anna, a lista de suicidas no feminino é interminável na galeria da ficção. Por exemplo, a ópera que ainda hoje ouvimos parece que foi criada de propósito para transformar a palavra ‘mulher’ num sinónimo da palavra ‘suicídio’: Abigail (“Nabucco”), Aida, Liù (“Turandot”), Gilda (“Rigoletto”), Gioconda, que grita “suicídio” com voz de soprano, Tosca, Senta, Cio-Cio-San (“Madame Butterfly”), Brunilda. Além da ópera, a pintura também teve a sua obsessão com a figura da suicida, sobretudo com Ophelia, a donzela que se afoga nas águas pantanosas. A lista prossegue no teatro, no cinema e, claro, no romance. Assim de memória, aqui e agora e sem pesquisa, lembro-me facilmente de uma pequena multidão de precursoras e descendentes de Anna e Emma: Lady Macbeth, Ofélia, claro, Antígona e Eurídice, Judy Barton (“Vertigo”), Hedda, Cathy (“A Leste do Paraíso”), as “Virgens Suicidas”, Alia Atreides (“Dune”), Ellen (“Nosferatu”), Alex (“Atração Fatal”), Susannah (“Lendas de Paixão”), Mal (“Inception”), Thelma e Louise e, já agora, a Catherine, de Truffaut (“Jules e Jim”), a Louise original. E reparem neste pormenor decisivo: mesmo quando criou uma heroína musculada de ação, Ellen Ripley (“Alien”), o cinema matou-a através do suicídio.
Haverá com certeza centenas ou mesmo milhares de outras suicidas na pintura, na música, no teatro, na literatura. Não, não estou a dizer que a arte ocidental não esboçou suicidas masculinos. O meu ponto é outro: foi criada uma mitologia enviesada e irrealista que associa o feminino ao suicídio; mitologia, essa, que foi reforçada pelo suicídio real de Virginia Woolf, que se afogou como uma Ofélia modernista depois de ter escrito o mais belo bilhete de suicídio de sempre. Mas, se nos afastarmos desta mitologia criada sobretudo por homens, percebemos que, na realidade, na vidinha tal como ela é, o suicídio é esmagadoramente masculino, na casa dos 75% para cima. Nos EUA, por exemplo, estamos a falar de um rácio de 21 suicídios masculinos por cem mil habitantes contra seis suicídios femininos. E este número é uma inflação recente devido às raparigas millennials. O rácio clássico na América era de 20 para quatro. Em países marcados a ferro quente pelo suicídio, como o Lituânia, o rácio é ainda mais esmagador: 48 suicídios masculinos para seis femininos. É na Ásia, e não no Ocidente, que o suicídio feminino se aproxima do suicídio masculino. Na China há oito suicídios masculinos e oito suicídios femininos por cem mil habitantes. Na Índia, há 19 masculinos para 15 femininos. Mesmo assim, na Ásia só se pode falar num empate entre sexos, e não na prevalência do suicídio feminino.