Sociedade

Quebra na vacinação coloca-nos em perigo

Projetos Expresso. Saúde. A diminuição da aplicação do Plano Nacional de Vacinação nas crianças leva especialistas a alertar para os novos surtos de doenças infecciosas — como o sarampo, já com quase tantos casos como em 2019 — que podem ocorrer se não houver uma retoma

Os dados mais recentes disponibilizados em Portugal apontam para o atraso na administração de mais de 13 mil vacinas contra o sarampo
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Já ouvimos falar nas últimas semanas do novo normal e do regresso gradual a uma realidade que nunca poderá ser a mesma que conhecíamos sem uma vacina contra a covid-19. O que não significa que as outras doenças não deixem de existir porque os holofotes (e os medos) estão todos fixados na pandemia. Até porque, apesar de para a maior parte dessas doenças existirem vacinas, podem surgir novos surtos se as crianças não receberem as vacinas devidas, colocando em risco não só a sua saúde mas também a da comunidade onde se inserem.

Portugal não é exceção a este perigo e os dados mais recentes apontam para que este seja uma ameaça real. A quebra de 13% no cumprimento do Plano Nacional de Vacinação foi mesmo mencionada pela diretora-geral de Saúde, Graça Freitas, e os números preocupam os especialistas em saúde pública e pediatria. “As doenças contra as quais vacinamos não estão eliminadas e muito menos erradicadas”, lembra Luís Varandas. O professor auxiliar de Pediatria da Nova Medical School garante que o país é “um bom exemplo, com taxas de cobertura excelentes” — que chegam aos 98% no caso do sarampo, por exemplo —, ao mesmo tempo que concede que “na situação atual os pais estão duplamente preocupados. Por um lado, têm consciência de que a descida das taxas de vacinação pode levar ao ressurgimento de algumas infeções e, por outro lado, têm medo da covid-19”.

A discussão sobre a vacinação infantil foi o foco da primeira conferência digital do projeto “Discutir o País” — em que o Expresso se associa à Sociedade Portuguesa de Pediatria e à UNICEF, com o apoio da GSK — para discutir os desafios da vacinação durante a pandemia. No debate, Luís Varandas apontou que, este ano, Portugal já tem quase tantos casos de sarampo como em todo o ano anterior, o que é motivo de apreensão. Juntamente com a “tosse convulsa e as várias formas de meningite bacteriana”, são as doenças que provocam mais dores de cabeça aos médicos e especialistas, que tentam mostrar aos pais que “podem e devem” vacinar os filhos, mesmo nesta fase.

“É urgente recuperar as vacinas em atraso e criar todas as condições para que não se adiem mais”, atira a diretora executiva da UNICEF Portugal. Beatriz Imperatori considera que “deve haver, seguramente, mais comunicação por parte das autoridades de saúde às famílias, no sentido de lhes garantir que devem vacinar as suas crianças e que é seguro fazê-lo”. E se a preocupação é notória, a confiança também. “Não é uma tendência, mas antes uma resposta a um contexto muito específico. Vamos rapidamente retomar os níveis a que estamos habituados em Portugal”, acredita a responsável, que fala também na necessidade de começar já a preparar os serviços de saúde para que estes “não fiquem sobrecarregados daqui a seis meses”.

A médica de saúde pública e delegada de saúde, Etelvina Calé, refere que cumprir o plano de vacinação dos 12 meses é fundamental para a saúde da criança porque surge na altura mais crítica para o desenvolvimento do corpo e para a formação de imunidades. O risco é maior do que aparenta, pois os pais não podem pensar que esperar não faz grande diferença. Cada momento conta e um atraso, por mais simples que seja, pode significar “o ressurgimento de outras doenças que tínhamos controlado”, apela.

O primeiro e o segundo ano de vida são as “idades-chave” na vacinação, acrescenta Inês Azevedo, presidente da Sociedade Portuguesa de Pediatria, que destaca a necessidade de “dar tranquilidade aos pais”. A covid-19 é “mais benigna em doentes com idade pediátrica”, explica, com esta faixa a representar pouco mais de mil infetados e menos de 5% dos casos registados. A pandemia também provocou uma “redução de 60% das idas às urgências relativamente ao ano passado na pediatria” e a responsável recorda que é “importante mantermos o acompanhamento e acesso das crianças” aos cuidados de saúde, seja presencialmente ou, quando necessário, por teleconsulta.

Inês Azevedo faz questão de mencionar que “as crianças abaixo dos dois anos não podem usar máscaras porque não as sabem usar e podem sufocar”, enquanto reflete sobre os “novos hábitos que vamos adquirindo” e que se parecem muito com os antigos. “Faz lembrar a minha infância e os conselhos da minha mãe e avó para lavar sempre as mãos e não partilhar os copos.”

“As pessoas não se podem refugiar no medo da covid-19”

Os centros de saúde são perfeitamente seguros e devem continuar a ser visitados sem qualquer tipo de medo. É a ideia consensual que fica das opiniões dos especialistas quando confrontados com os receios dos pais em ir com os seus filhos para cumprir o Plano Nacional de Vacinação ou perante uma doença aguda. “Não devem hesitar”, aponta a pediatra e presidente da Sociedade Portuguesa de Pediatria, Inês Azevedo, enquanto Etelvina Calé reforça que já “existem circuitos completamente separados” para atender este tipo de intervenções e demais urgências. A médica de saúde pública e delegada de saúde relembra também que a quebra na afluência não é sinónimo de “quebra na cobertura”, ou seja, os pais não se devem atrasar na vacinação dos filhos porque tudo continua disponível. Para Luís Varandas, professor auxiliar de Pediatria da Nova Medical School, é claro que “as pessoas não se podem refugiar no medo da covid-19” e que “tomar mais que uma vacina de uma só vez” não tem perigo e pode ser uma boa forma de poupar nas idas ao centro de saúde.

Melhores Frases

“Há muitas crianças em risco. É fundamental que esta questão da proteção aconteça. Em 2018, houve mais de 100 milhões vacinadas e agora esse trabalho está em risco com a pandemia. Vemos com grande preocupação e estamos a pensar como contribuir para repor estes programas de vacinação que são essenciais junto das comunidades mais desfavorecidas”
Beatriz Imperatori, Diretora executiva da UNICEF Portugal

“A vacinação tem que ser ativa, não pode ser cessada por períodos muito longos. Durante o mês de abril as pessoas já foram percebendo que é seguro, já se está a notar um aumento da afluência. O que é um bom indicador, após a quebra. E não vão passar muito tempo no centro de saúde com os filhos se cumprirem a hora marcada previamente”
Etelvina Calé, Médica de saúde pública e delegada de saúde

“As crianças passam muitas horas à frente do ecrã e agora ainda mais. É importante que os pais encontrem forma de diminuir este tempo de exposição. Até porque estamos a perceber um aumento de perturbações de ansiedade nas crianças que veem notícias que muitas vezes não são para a idade delas. O isolamento é uma situação que nos traz novos desafios”
Inês Azevedo, Presidente da Sociedade Portuguesa de Pediatria

Textos originalmente publicados no Expresso de 1 de maio de 2020