Sociedade

Cigarros eletrónicos e tabaco aquecido. O que diz afinal a Organização Mundial de Saúde?

O aparecimento de casos de doença pulmonar justificou o aviso relativamente aos cigarros eletrónicos e tabaco aquecido, explica ao Expresso a Direção-Geral de Saúde, dizendo-se, tal como a Tabaqueira, “atenta a todos os resultados de investigação científica bem conduzida e isenta de conflitos de interesses”. As duas entidades citam a OMS para defender os seus argumentos. Mas, afinal, o que pensa a organização sobre este tema?

TOLGA AKMEN/GETTY IMAGES

A Direção-Geral de Saúde (DGS) avisou na quinta-feira que os cigarros eletrónicos e o tabaco aquecido apresentam “riscos para a saúde e não devem ser consumidos”. Também desaconselhou em todas as circunstâncias o uso de cigarros eletrónicos “com ou sem nicotina, particularmente por jovens, jovens adultos ou mulheres grávidas”. Mas, em setembro, quando começaram a surgir os primeiros casos de doença pulmonar nos EUA associados à utilização de cigarros eletrónicos, a DGS afirmou apenas estar a “acompanhar a situação”. O que justifica agora esta tomada de posição tão contundente?

Ao Expresso, a DGS explica que, devido ao aparecimento de casos “no Canadá e em países europeus, como a Bélgica e a Suécia”, associados “ao consumo de líquidos em cigarros eletrónicos aos quais tinham sido adicionados derivados de cannabis e aditivos como o acetato de vitamina E”, foi “sentida a necessidade de informar a população de modo mais claro quanto aos riscos destes novos produtos”.

E foi precisamente isso que a DGS fez ontem, num comunicado enviado às redações em que, além de afirmar que “não existem cigarros eletrónicos nem produtos de tabaco seguros, nomeadamente tabaco aquecido”, não devendo por isso “ser consumidos”, desaconselha em particular o uso de cigarros eletrónicos que têm líquidos que contêm canabidiol e outros derivados de canábis, acetato de vitamina E e o aromatizante diacetil, substâncias que “parecem ser associadas a lesões pulmonares”. Na nota, a DGS afirma, ainda, que os cigarros eletrónicos com ou sem nicotina — que, a par do vaping, estão associados a 2291 casos de doença pulmonar nos EUA, com a morte de 48 pessoas, segundo números recentes do Centro de Controlo e Prevenção de Doenças (CDC, na sigla original) — “nunca devem ser usados, particularmente por jovens, jovens adultos ou mulheres grávidas”.

Fumadores “merecem uma solução baseada na evidência”

Em resposta às recomendações da DGS, a Tabaqueira emitiu também um comunicado, cerca de uma hora depois, a afirmar que o tabaco aquecido “é uma melhor alternativa” para os fumadores quando comparado com o tabaco tradicional e a criticar as recomendações, uma vez que os fumadores “merecem uma solução baseada na evidência”, não devendo ser alvo de “mensagens imprecisas e incompletas”. Também afirma, “com base em dados da OMS, que o número de homens e mulheres que irão continuar a fumar irá manter-se praticamente estável “num futuro próximo e para esses faz sentido a disponibilização de alternativas que tenham o potencial de ser menos nocivas que os cigarros”.

A subsidiária da Philip Morris International lembra que o tabaco aquecido por si comercializado “foi autorizado para comercialização nos EUA”, tendo a Administração de Alimentos e Medicamentos dos EUA (FDA), na altura, “emitido um comunicado de imprensa em que afirmou que ‘após uma revisão científica rigorosa, […], a agência determinou que a autorização desses produtos para o mercado dos EUA é apropriada para a proteção da saúde pública, porque entre outras considerações fundamentais, o produto produz níveis menores ou inferiores de alguns constituintes tóxicos do que os cigarros combustíveis. Por exemplo, a exposição ao monóxido de carbono do aerossol […] é comparável à exposição ambiente e os níveis de acroleína e formaldeído são 89% a 95% e 66% a 91%, respetivamente, menores do que os dos cigarros combustíveis.”

E embora concorde que “a composição química do aerossol, por si própria, não é suficiente para permitir conclusões sobre o potencial de redução do risco de um produto”, a Tabaqueira refere que, “até à data, foram completados 18 estudos não clínicos e 10 estudos clínicos em fumadores adultos”, tendo sido possível “demonstrar que a redução das emissões tóxicas no aerossol do produto se traduz numa redução de toxicidade em modelos laboratoriais, menor exposição em estudos clínicos, seguido por melhorias na resposta biológica de pessoas que mudaram para o produto de tabaco aquecido em comparação com continuarem a fumar, o que é um passo em frente no sentido de confirmar a redução do risco”.

Confrontada com as declarações, a DGS afirma estar “naturalmente atenta a todos os resultados de investigação científica bem conduzida e isenta de conflitos de interesses, bem como às recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS), que vão no sentido de, acrescenta, “não recomendar estes produtos na cessação tabágica ou na redução de danos”.

OMS diz que “exposição a químicos nocivos e potencialmente nocivos” do tabaco aquecido “pode ser inferior” à dos cigarros convencionais

De acordo com o documento “WHO report on the global tobacco epidemic”, divulgado pela OMS em 2019, “os produtos de tabaco aquecido são amplamente publicitados como uma alternativa segura para os fumadores” e “os fabricantes alegam muitas vezes que o aerossol produzido pelo tabaco aquecido contém menos quantidade de substâncias nocivas do que o fumo do cigarro e, por isso, é menos prejudicial para a saúde”. No entanto, acrescenta o relatório, “frases como ‘é possível que seja menos nocivo’ ou ‘potencialmente menos nocivo’ não significam que a redução do risco esteja demonstrada”.

De acordo com o relatório da OMS, a informação que foi possível recolher até à data mostra que “muitos dos químicos prejudiciais para a saúde produzidos pelos produtos de tabaco aquecido são similares aos produzidos pelos cigarros convencionais, mas geralmente em níveis inferiores”. No entanto, “há também provas de que há novos químicos nos produtos de tabaco aquecido que não estão presentes nas emissões dos cigarros convencionais e que podem ter algum nível de toxicidade e danos associados”.

Quanto à possibilidade de serem menos nocivos para a saúde, diz o relatório que, “até ao momento, os dados recolhidos mostram que a exposição a químicos nocivos e potencialmente nocivos pode ser inferior à dos cigarros convencionais”. O que não significa, porém, “que causem menos doenças relacionadas com o tabaco”. Quanto à utilização destes produtos na cessação tabágica, a OMS refere que, tratando-se o tabaco aquecido de um “produto de tabaco, mesmo que passe a haver uma utilização desses produtos, isso não significa que haja uma cessação”. “As alegações de que os fumadores trocam o tabaco convencional pelo tabaco aquecido, limitando-se a utilizar exclusivamente este, não têm fundamento.”

Relativamente aos cigarros eletrónicos, a OMS refere, no estudo citado, que “é provável” que os aerossóis produzidos por estes cigarros “sejam menos tóxicos”, mas “ainda não há informação suficiente para quantificar o nível exato de risco associado” à sua utilização. Além disso, “há vários fatores que têm influência no risco relativo associado ao seu uso”, como, por exemplo “a quantidade de nicotina e outros tóxicos no líquido aquecido”. Face à ausência de dados, também ainda não é possível “quantificar o risco e os efeitos de longo prazo da exposição às emissões tóxicas dos cigarros eletrónicos”, nem a sua eficácia em termos de cessação tabágica. “Até ao momento, e dada a diversidade de cigarros eletrónicos disponível no mercado, a sua eficácia na cessação tabágica ainda é inconclusiva”.

FDA “não afirmou que há uma redução de danos” no tabaco aquecido, alega DGS, em resposta à Tabaqueira

Ao Expresso, a Direção-Geral de Saúde afirma também, e comentando a autorização da Administração de Alimentos e Medicamentos dos EUA para a entrada no mercado de produtos de tabaco aquecido, que a referida entidade não afirmou que, no caso do tabaco aquecido, “há uma redução de danos para a saúde”, e remete para a leitura de um documento da FDA. Neste, refere-se que “não existem produtos de tabaco seguro” e que os cigarros em que não há combustão [como o tabaco aquecido] podem ajudar a reduzir o risco relacionado com os danos causados pelo tabaco no caso dos fumadores adultos que abdiquem totalmente de cigarros em que há combustão, ainda que todos os produtos de tabaco possam causar adição por causa da nicotina e conter tóxicos e químicos associados ao cancro”.

A DGS cita ainda as conclusões do Grupo de Estudos da OMS, vertidas no documento “WHO Study Group on Tobacco Product Regulation”, que, diz, “vêm reforçar a necessidade de se continuar a acompanhar o assunto, tendo por base estudos elaborados por entidades independentes”. Como o “referido relatório ilustra”, conclui a DGS, “trata-se de uma matéria complexa e com muitas implicações, não só em termos de saúde individual, mas também coletiva”.