Sociedade

“O que ela defende é o céu, é uma utopia. Não tem mal nenhum ser utópico. Mas é uma farsa, é hipócrita.” É mesmo? Viagem ao mundo de Greta

Ela falou na ONU e depois todos falaram sobre o que ela falou. E também sobre a maneira como ela falou. Afinal, o que disse Greta Thunberg de fundamentalmente certo ou de concretamente errado?

Stephanie Keith

A ação de Greta e a forma como se traga o conteúdo da mensagem a favor do clima faz lembrar a erva mate. Ou chimarrão, para os brasileiros. Bebida característica da América do Sul, uma espécie de chá, é associada por muitos ao convívio, ao bem-estar, às conversas, à comunidade, ao tempo. Às pessoas. Por outro lado, existem aqueles que olham, cheiram e saboreiam o amargo mate com desconfiança e desgosto. É um pouco como o mundo em que vive Greta Thunberg, a rapariga de 16 anos que colocou o clima em cima da mesa do mundo.

O debate sobre as alterações climáticas é tema urgente, embora homens poderosos como Donald Trump e Jair Bolsonaro neguem a sua existência. Os cientistas e diversas organizações garantem que é uma realidade. E essas mudanças no mundo como o conhecemos alteram a maneira como o mundo acontece, seja a nível económico, social ou político. Seja traduzido em guerras ou migrações em massa. Ou doenças, problemas dramáticos no solo ou a libertação de gases como o metano (CH4) por derretimento de territórios que supostamente eram blocos de gelo permanentes. O mundo está a mudar.

A história de Greta começou quando ganhou uma competição de redação de um jornal sueco, revelou a adolescente num tweet, em fevereiro, aqui citado pela “Visão”. O tema era o meio ambiente. “Publiquei o meu artigo e algumas pessoas contactaram-me, entre eles estava Bo Thorén, da associação ambiental Fossil Free Dalsland, que tinha um grupo de jovens e queria fazer algo sobre a crise climática.” Algumas reuniões depois, nasceu a primeira greve escolar pelo clima, inspirada nos Parkland Students, que também optaram por uma greve após um tiroteio naquela escola norte-americana.

E a angústia de Greta cresceu. E a sensibilidade de uma franja da população mundial também.

Sentou-se à porta do parlamento sueco. Foi ao Congresso dos Estados Unidos e agora à Cimeira do Clima, em Nova Iorque, organizada pelas Nações Unidas. A menina sueca até ganhou o Nobel Alternativo. Greta quer outro mundo, em que o “crescimento económico eterno” não seja o grande desígnio. “Desculpem, não estão a esforçar-se o suficiente”, disse.

Stephanie Keith

As mais drásticas palavras de Greta aconteceram em Nova Iorque, num tom dramático, que parecia encenado, treinado 1001 vezes: “Isto está tudo mal. Eu não devia estar aqui, eu devia estar na escola no outro lado do oceano. Mas vocês vêm todos ter connosco, os jovens, para ter esperança. Como se atrevem? Roubaram os meus sonhos e a minha infância com as vossas palavras vazias. E, mesmo assim, eu sou uma das sortudas”.

Não faltam textos sobre as consequências das alterações climáticas, como este de Angelina Jolie, a comissária para os refugiados na ONU, na revista “Time”, em que garante que essas mudanças no clima estão já a ser responsáveis pelo deslocamento de milhões de pessoas.

Esses fenómenos climáticos estão, de facto, a mudar o mundo? “Quanto a isso não há dúvida”, diz ao Expresso João Branco, da Quercus. “Houve uma cientista do painel de cientistas das Nações Unidas que disse que as alterações climáticas são irreversíveis e que, mesmo que se trave agora as emissões de gases de efeito estufa, não vão regredir.”

Mais: “A organização mundial de meteorologia, há dois ou três dias, escreveu outro relatório a dizer que há alterações substanciais nos oceanos e que vão trazer alterações climáticas, porque os oceanos regulam grande parte do clima. Mas isso não é de agora. As informações são recorrentes, mas as pessoas, de vez em quando, lembram-se de dar mais importância ao assunto. Não é novo”.

Alexis Rosenfeld

Francisco Ferreira, da ZERO, aplaude o papel de Greta. “Enquanto as associações do ambiente e cientistas tentam colocar o tema de uma forma mais apaziguadora, ela diz de uma forma direta e correta. O nosso problema está no crescimento económico e na forma como este crescimento alimenta a sociedade. Ela diz que os políticos dizem muitas palavras mas que a ação está longe do desejável. O secretário-geral da ONU [António Guterres] também o disse. Se formos ver os pontos do discurso, é difícil discordarmos. (...) A mensagem está lá. Os resultados, com algum prejuízo e alguma crítica, os alertas, estão a fazer o seu caminho a par do que os cientistas dizem.”

Mas voltemos ao mate. Nem tudo é preto e branco.

Henrique Monteiro, cronista do Expresso, questiona o discurso da sueca. “Greta disse que as gerações anteriores lhe roubaram os sonhos e o futuro, lançando um fulminante 'como se atrevem?'. Os atrevidos despencaram-se em aplausos, como se reconhecessem ter andado a destruir os sonhos da menina”, escreve AQUI. “A mim, parece-me que a intenção da maioria das pessoas ali sentadas, como a da maioria das pessoas das gerações anteriores a Greta, não foi prejudicá-la, roubarem-lhe os sonhos ou dar-lhe cabo do futuro. (...) Com a globalização (e se há algo global é o clima, na atmosfera não há fronteiras) conseguiram diminuir a pobreza no mundo. Sim, é verdade que aumentaram as desigualdades, mas a pobreza diminui imenso. Na Índia, na China e no Sudeste Asiático, na América Latina, a situação dos povos melhorou substancialmente. Mesmo na sacrificada África pode dizer-se ‘quem a viu e quem a vê’. Com este incremento nunca visto do bem-estar aumentaram as emissões de CO2 (dióxido de carbono), CH4 (metano) e de outros gases com efeito de estufa. Para tornar o mundo melhor.”

Numa publicação no Facebook, Bruno Vieira Amaral, escritor e também cronista do Expresso, censura igualmente a hipocrisia. “Ok, ok, a Greta Thunberg e o seu discurso emocionado que comoveu todos os ocidentais que levam uma vida inteira a beneficiar dos privilégios concedidos pelo crescimento económico e pelo consumismo e encontram na culpa, na má-consciência, uma saída bonitinha para a redenção. Se se sentem melhor assim, óptimo”, escreve naquela rede social (AQUI), antes de atacar a postura de Guterres, um homem com “propensão para o verbo gelatinoso e os discursos vazios”.

Stephanie Keith

João Duque, professor catedrático de Finanças no ISEG-ULisboa, coloca-se do lado dos críticos. “É uma hipocrisia total. Eles sabem que isto é hipócrita. Não podem parar, isto não pode parar desta maneira. Se pára, é uma desgraça. Admito que tenhamos uma parte significativa de responsabilidade, mas imaginar travar isso, de uma momento para o outro, é uma coisa absurda. Porque o mais pequeno ato que cometemos, como simplesmente beber café, tem uma carga tão grande de contributo para as emissões que é ridículo.” Duque fica reticente quanto ao futuro de um mundo que abranda: “Se levar a redução dos padrões de consumo das pessoas, tem um impacto enorme na atividade. Se as pessoas deixam de produzir, ficam desempregadas e não têm atividade. Como é que se faz isto?… Se é para andar com corda à volta da cintura, descalço, como São Francisco de Assis, isso é uma maravilha. Quando há, come-se; quando não há, não se come”.

João Duque, embora defenda que há uma ligação direta entre a evolução como sociedade e a degradação do ambiente, não é fatalista. “Se calhar podemos continuar a desenvolver tentando fazer de outra maneira, reaproveitando mais os materiais, otimizando recursos…”

Voltemos ao texto de Henrique Monteiro: “As perguntas de Greta são agressivas, a miúda tem garra e tem a arrogância própria de quem vê apenas um problema e não o conjunto, a árvore e não a floresta. Mas não dão quaisquer respostas diferentes das que foram dadas, sem resultados nos últimos anos. A demagogia e o populismo rasteiros desta iniciativa são inconscientes. (...)”. No fundo, este tema nada diz aos povos que serão mais afetados pelas alterações que se vão revelando, diz. E parece haver poucas dúvidas quanto aos que serão mais afetados: os mais pobres. Duque concorda: “Ela olha para a árvore e não vê a floresta. Não vê o impacto que poderia ter uma travagem na deslocação de bens e pessoas no mundo, de 10%, 15%, 20%... era uma calamidade”.

NurPhoto

João Branco admira o que Greta está a fazer. “É uma adolescente e as ações são adequadas ou de acordo com a idade que tem. Em todas as épocas, vemos jovens a defender várias causas. Da parte que me toca, a Greta teve uma grande virtude que foi acordar os adolescentes e a juventude para estas questões. Normalmente estão muito afastados destas questões ambientais. Em Portugal, já vemos manifestações de jovens. Temos de dar o crédito à rapariga.” Francisco Ferreira reforça: “Tem sido mobilizadora à escala mundial, e isso era preciso. Tem sido crucial.”

Se há teses que desvalorizam o teor e a forma da mensagem de Greta e dos seus seguidores, há quem ande pelo terreno a validar que as palavras da jovem sueca não são em vão. Ela denunciou que já há pessoas a morrer devido às alterações climáticas, assim como há registos de migrações em massa e a morte de vários ecossistemas. Mais: que caminhamos para uma extinção em massa. João Antunes, porta-voz da organização humanitária Médicos Sem Fronteiras Portugal (MSF), sustenta a posição. As situações críticas e os pedidos de ajuda têm crescido. Falamos de eventos climáticos extremos, ciclones, cheias, secas, desertificação, migrações, fomes.

“Em alguns países, a situação está a agravar-se. Com o aumento destes eventos climáticos extremos, temos uma consequência imediata devastadora ao nível da saúde pública em países que já tinham sistemas de saúde muito frágeis”, explica ao Expresso Antunes, porta-voz de uma organização que está em 70 países. Mais uma vez: “As populações mais pobres são as mais vulneráveis, as que estão mais expostas a estes cenários”.

O porta-voz da MSF Portugal dá uma mão cheia de exemplos. No Darfur do Sul luta-se pelos recursos, pelo acesso à água e por terrenos agrícolas. Os conflitos armados crescem. Haverá mais, garante ele e um deputado noruguês que diz que o clima será a maior causa de conflitos e migrações de refugiados. Antunes fala também em Moçambique e nos dois ciclones recentes. “Traduziu-se em dois milhões de afetados. Mexeu com a qualidade de vida das pessoas afetadas e observou-se uma proliferação de patologias, como cólera e um aumento exponencial de pacientes com malária.” Ou o caso do Bangladesh e a subida das águas, que estão a salinizar os terrenos e a obrigar à mudança em massa de milhões de pessoas para locais já por si lotados, complicando as condições sanitárias. A dignidade não se progaga como a miséria. Finalmente, o caso das Honduras, onde as chuvas constantes estão a provocar “o maior surto de dengue dos últimos 50 anos”. E remata: “Até 2050, estima-se que haja um número aproximado de 200 milhões de migrantes ou deslocados por razões climáticas”.

The Washington Post

Outro drama, explica João Branco, está associado ao metano (CH4), o tal gás expelido pelas vacas que originou histórias como aquela na Universidade de Coimbra. “Há ecossistemas a morrer. Em Portugal, os carvalhais de folha caduca praticamente desapareceram todos. Os sobreirais estão a morrer no Alentejo. O Ártico, as florestas boreais que existem à volta do Ártico… Este ano houve incêndios brutais. Nas zonas boreais está o permafrost, o terreno congelado permanentemente, e que grande parte está a derreter e a libertar imensa quantidade de metano, que tem um poder de efeito estufa muito superior ao dióxido de carbono. (...) Toda a região gelada do norte da Sibéria, Canadá, Alasca, Gronelândia, está a acumular matéria orgânica há milhões de anos. Tem muito metano preso no solo gelado. Com o derretimento desse solo, esse metano é libertado para a atmosfera, ao nível da libertação de CO2 pelos carros.”

O mundo está a mudar e Greta, acusada de andar a reboque de famílias ricas ou de ser marioneta dos pais, está a servir de megafone. Uns veem hipocrisia, outros uma necessidade. Uma coisa é certa: “A ajuda humanitária é cada vez mais necessária em muitos destes sítios que mencionei”, diz o porta-voz da MSF Portugal. “Sentimos que há uma necessidade de prestar ajuda humanitária a mais pessoas.” E as alterações climáticas estão a potenciar esse cenário.

Mas há também o outro lado, que não consegue conceber um mundo que se desenvolve sem destruir os recursos. Será sempre um amanhã menos clean. “Há muita coisa que está relacionada com o desenvolvimento industrial”, diz João Duque. “Não podemos refazer as história, não é possível. Podemos escrever uns romances de ficção científica, mas não se consegue refazer a história. (...) O que ela defende é o céu, é uma utopia. Não tem mal nenhum ser utópico. Mas é uma farsa, é hipócrita. É bonito mas não se pode fazer sem a insatisfação dos povos.”

Greta chegou a dizer que, “durante toda a vida”, foi como “uma rapariga invisível que está lá atrás e ninguém a vê ou ouve”. A vida de Greta mudou e o debate sobre o clima também.