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Afinal, o que se passa com os cigarros eletrónicos? Conheça a resposta a 12 dúvidas

Surgiu quase como um surto, de repente havia 450 casos de doença pulmonar supostamente causada pela utilização de cigarros eletrónicos com diferentes substâncias e seis mortes confirmadas, mas as dúvidas persistem. De que doença temos estado, afinal, a falar ao longo dos últimos dias? E o que sabemos sobre os casos nos EUA e como é que a situação está a ser acompanhada? Por cá, a Direção-Geral da Saúde afirma que “até à data, não foram identificados quaisquer casos em Portugal semelhantes aos registados nos EUA” mas garante “estar a acompanhar a situação”

Joe Raedle/Getty Images

Quando é que surgiu a preocupação em torno deste assunto?

Há décadas que os cigarros eletrónicos estão à venda, mas os relatos de doenças pulmonares associados ao “vaping” (vaporização de substâncias) começaram a multiplicar-se este ano. Os primeiros casos surgiram em abril, no Illinois e no Wisconsin, de acordo com uma investigação realizada pelos departamentos de saúde dos dois estados norte-americanos. Foram confirmados, nessa altura, 53 casos, correspondentes, na sua maioria, a jovens do sexo masculino com uma média de idade de 19 anos. Quase todos foram hospitalizados, tendo muitos deles sido internados nos cuidados intensivos e um terço necessitado da ajuda de um ventilador para respirar.

Quantos casos semelhantes surgiram desde então?

Até esta terça-feira, 10 de setembro, tinham sido confirmados 450 possíveis casos de doença pulmonar em 33 estados norte-americanos e nas Ilhas Virgens Americanas, segundo números do Centro de Controlo e Prevenção de Doenças (CDC, na sigla original). Embora estes casos correspondam, na sua maioria, a jovens, as vítimas mortais — e foram registadas seis até ao momento, algo que explicaremos melhor na resposta seguinte — eram adultos com problemas de saúde crónicos.

O que se sabe sobre as vítimas mortais?

Foram confirmadas até ao momento seis vítimas mortais, a primeira no Illinois, a 23 de agosto, e as seguintes no Oregon, Indiana, Minnesota, Califórnia e Kansas, estado no qual se registou, aliás, a morte mais recente, a de uma pessoa com mais de 50 anos, a 10 de setembro. De acordo com as autoridades de saúde do Kansas, a vítima tinha já um historial de problemas de saúde e “foi hospitalizada com sintomas que progrediram rapidamente”. Não foi avançada qualquer informação sobre o dispositivo eletrónico de vaporização que terá usado, informação que também não terá sido revelada nos casos de morte anteriores.

Quais os sintomas apresentados?

Algumas das pessoas afetadas apresentaram sintomas como tosse, dor no peito e dificuldade em respirar (sintomas que, num curto período de tempo, ter-se-ão agravado, ao ponto de terem de ser hospitalizadas) e outras náuseas, vómitos, diarreia, fadiga e perda de peso. Ainda de acordo com o CDC, houve casos de insuficiência respiratória, que acontece quando os pulmões apresentam dificuldades para fazer as trocas gasosas normais, não conseguindo, desse modo, oxigenar adequadamente o sangue ou ser capaz de eliminar o excesso de dióxido de carbono, ou ambos.

De que problemas pulmonares estamos a falar?

Esta é umas das várias perguntas que carece de uma resposta concreta, por enquanto. Apesar dos sintomas em comum, não se sabe exatamente de que doença pulmonar se trata, pelo que “ainda não há um nome para lhe dar”, diz ao Expresso Ana Figueiredo, pneumologista e médica especialista em cessação tabágica. “Nem nós sabemos bem que tipo de doença é esta. Que se trata de uma doença grave, com infiltrados pulmonares bilaterais, com insuficiência respiratória grave, sabemos, mas ainda não há um diagnóstico”, explica. As radiografias ao tórax de uma das pessoas afetadas, uma jovem norte-americana de 18 anos, de nome Siman Herman, revelaram a existência de uma enorme área branca nos seus pulmões, que estariam inflamados e cheios de líquido. “A minha suspeita, sendo que ainda estamos todos a tentar perceber o que se passa, é a da existência de uma grave reação inflamatória nos seus pulmões a produtos utilizados para vaporizar [cigarros eletrónicos] ou a alguns componentes desses produtos”, afirmou a sua médica, à ABC.

O que é que os cigarros eletrónicos têm a ver com isto?

Além dos sintomas, as pessoas afetadas têm em comum o facto de terem utilizado cigarros eletrónicos, de diferentes tipos e de uma grande variedade de marcas de líquidos e cápsulas. Toda a informação divulgada até agora, incluindo a oficial, sugere que há, de facto, uma ligação óbvia entre os problemas pulmonares reportados e a utilização de cigarros eletrónicos. Além das substâncias que o líquido destes cigarros normalmente contém — propilenoglicol e/ou glicerina e “aromas”, água, álcool e outras substâncias que são vaporizadas e inaladas para os pulmões, — há quem adicione líquidos ou óleos contendo derivados de canábis, e isso ganha aqui uma enorme importância.

É que, de acordo com uma análise preliminar realizada pelo CDC a 215 casos de doença pulmonar causada possivelmente pela utilização deste tipo de cigarros, a maioria terá recorrido a produtos que continham compostos da canábis, incluindo THC (tetraidrocanabinol), noticiou o jornal “The Hill”. Alguns destes pacientes disseram ter utilizado dispositivos que apenas continham nicotina, enquanto outros afirmaram que continham tanto nicotina como THC. Na semana passada, as autoridades de saúde de Nova Iorque disseram ter sido encontrados elevados níveis de vitamina E (acetato de racealfatocoferol) em quase todos os produtos “vaping” e que os testes de laboratório realizados depois pelo Departamento de Saúde daquele estado revelaram a existência de “níveis muito elevados” desta mesma vitamina em amostras que continham canábis.

A segunda vítima mortal, ocorrida no Oregon, morreu, aliás, depois de ter utilizado um cigarro eletrónico que continha um óleo derivado de canábis. Mas qual é exatamente a substância responsável pelos graves problemas pulmonares reportados? Isso não se sabe, por enquanto, mas vão sendo deixadas pistas. “O que sabe é que muitas substâncias, ao serem aquecidas a alta temperatura, sofrem transformações químicas e podem tornar-se tóxicas. Essa é a suspeita que existe”, explica a pneumologista Ana Figueiredo.

O que dizem os médicos sobre o assunto?

Devido ao desconhecimento que ainda prevalece em relação às causas do problema, o CDC apelou a que a população não utilizasse cigarros eletrónicos, por ser essa, na opinião da médica Dana Meaney-Delman, que trabalha no referido centro, “a única forma de prevenir doenças pulmonares”. “Assim que obtivermos mais informações sobre os cigarros eletrónicos iremos rever as nossas recomendações sobre esses produtos”, disse ainda.

Esta foi também a posição assumida em Portugal pela Sociedade Portuguesa de Pneumologia (SPP), que desaconselhou o uso destes cigarros, sobretudo por parte de “grupos mais vulneráveis, como as crianças, adolescentes, adultos jovens, grávidas, idosos e doentes respiratórios crónicos”. E recomendou que todos os doentes que cheguem às unidades de saúde portuguesas com problemas respiratórios agudos devem ser questionados sobre se fumam cigarros eletrónicos. Também aconselhou os consumidores de cigarros eletrónicos que desenvolvam sintomas respiratórios agudos a procurar a ajuda de um médico e advertiu que “a utilização de dispositivos adquiridos fora do comércio regulado, a sua utilização modificada ou a adição de líquidos ou óleos contendo derivados da canábis ou outros aditivos é especialmente perigosa”. Ana Figueiredo reforça as recomendações da SPP: “Acho que as pessoas, neste momento, deviam deixar de utilizar cigarros eletrónicos. Seja qual for o produto ou a substância, ou se foi adquirido de forma legal ou ilegal, não me parece seguro ou prudente continuar a utilizar estes dispositivos. Enquanto não se souber o que se passa, é um risco fazê-lo.”

Que medidas foram tomadas pelas autoridades norte-americanas face a esta situação?

A FDA, a agência que controla a qualidade alimentar e dos fármacos nos EUA, recolheu já cerca de 120 amostras de diferentes químicos, incluindo nicotina, canabinóides, aditivos e pesticidas, para testar. Em comunicado divulgado na terça-feira desta semana, a porta-voz da agência, Stephanie Caccomo, afirmou que perceber as causas do problema é “a prioridade principal” e que estão a ser investigados vários tipos de dispositivos “vaping”, desde os que contêm componentes de canábis até aos cigarros eletrónicos.

Novidade. Cigarros eletrónicos, são encarados como uma alternativa menos prejudicial em Inglaterra. Para os médicos, o melhor mesmo é ficar longe de todos
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A FDA garantiu ainda estar a tomar medidas para pôr fim à utilização destes cigarros por jovens (de tal modo disseminada que há já quem se refira ao problema como uma “epidemia”). Segundo um estudo realizado em 2016, citado pela CNN, cerca de 10 milhões de pessoas utilizam cigarros eletrónicos nos EUA e metades delas têm menos de 35 anos, sendo os jovens com idades entre os 18 e os 24 anos os utilizadores mais frequentes. “Estamos a fazer executar as leis e a investir em campanhas para educar os jovens sobre os riscos dos cigarros”, afirmou a agência, que também esta semana fez chegou uma carta a advertir a Juul, uma das maiores “startups” do mundo que comercializa e desenvolve tecnologia para cigarros eletrónicos e que vai entrar em Portugal em outubro, por ter promovido os seus produtos como uma alternativa mais saudável aos cigarros tradicionais, quando não foram realizados ainda estudos que o comprovem.

Já na quarta-feira, o Presidente dos Estados Unidos da América, Donald Trump, anunciou que a sua administração vai propor a proibição de milhares de sabores usados nos cigarros eletrónicos, por considerar que são necessárias “medidas fortes” para “proteger crianças inocentes dos potenciais riscos”, já depois de o secretário de Saúde e Serviços Humanos, Alex Azar, ter dito que a FDA vai desenvolver diretrizes para retirar todos os sabores de cigarros eletrónicos do mercado, sobretudo os que despertam mais interesse nos jovens.

A governadora do Estado do Michigan, Gretchen Whitmer, já tinha decretado durante a semana a proibição de venda de cigarros eletrónicos com sabores e acusou as empresas de publicidade enganosa destinada a “viciar crianças com nicotina”. No final de junho deste ano, a cidade de São Francisco, no estado norte-americano da Califórnia, anunciou que vai proibir a venda de cigarros eletrónicos já no início do próximo ano.

E em Portugal?

Em resposta a uma série de questões enviadas pelo Expresso, a Direção-Geral da Saúde (DGS) referiu estar a “acompanhar a situação” e garantiu que, “até à data, não foram identificados quaisquer casos em Portugal semelhantes aos registados nos EUA”. Em todo o caso, sublinhou que irá “ser reforçada a articulação com outras entidades reguladoras e responsáveis pela inspeção do mercado”, apelando aos “profissionais de saúde para que notifiquem a DGS caso identifiquem situações de doença relacionadas com o uso destes produtos e difundir materiais informativos para a população”. Também a pneumologista Ana Figueiredo diz não ter conhecimento de nenhum caso semelhante em Portugal (“nunca vimos nada assim”, reforça), “embora estejam descritos outros casos, mais esporádicos, de outro tipo de doenças pulmonares causadas pelos cigarros eletrónicos”.

Cigarros eletrónicos vs cigarros tradicionais. Em que ponto estamos?

Continua a não haver um consenso, com as empresas que fabricam os cigarros eletrónicos a alegar que estes são uma alternativa mais saudável aos tradicionais cigarros, por um lado, e a comunidade médica, por outro lado, a manifestar a sua preocupação e a defender que os riscos são semelhantes aos do tabaco tradicional. E se há estudos que comprovam que a sua utilização é benéfica no sentido de ajudar os seus utilizadores a deixar de fumar (conclusão que consta de um estudo publicado em janeiro deste ano no “New England Journal of Medicine”), também há quem mantenha reservas sobre essa ligação. A posição da Organização Mundial de Saúde (OMS) é que não há dados científicos suficientes para recomendar o cigarro eletrónico na cessação tabágica e que estes são “sem dúvida, prejudiciais” para a saúde.

Ao Expresso, Emanuel Esteves, presidente da Confederação Portuguesa de Prevenção do Tabagismo (COPPT), diz que “não está provada a menor perigosidade nem a inocência destes dispositivos”. “Quando se fala em ‘alternativa menos nociva’, o que se entende por isso? Haverá diferença entre alguém morrer muito, ou morrer pouco? Não, simplesmente morre-se, porque o tabaco mata. Logo, seja o tabaco tradicional, sejam outros dispositivos mais elaborados tecnicamente, desde que contenham tabaco, ou produtos de tabaco, matam”. Além dos riscos associados ao tabaco, há ainda a considerar “riscos próprios destes dispositivos tecnológicos”, diz Emanuel Esteves. “Os cigarros electrónicos, ou o tabaco aquecido, são armas químicas ambulantes, que podem espoletar a qualquer momento e atingir quem consome e quem esteja ao redor”. Quanto à sua utilidade para pessoas que queiram deixar de fumar, e utilizam estes cigarros numa fase de transição, o presidente da COPPT diz que esse “efeito não é cumprido e que se vão somando os estudos que comprometem o seu uso na cessação tabágica autónoma”.

Ana Figueiredo, por sua vez, diz que quer no caso dos cigarros eletrónicos ou do tabaco aquecido, quer no caso dos cigarros tradicionais, trata-se de “inalar substâncias que não são ar e que portanto isso será sempre desaconselhável do ponto de vista respiratório”. “Há vários artigos que mostram que os vapores produzem substâncias tóxicas”. E o mais “preocupante”, diz, é que só daqui a vários anos saberemos quais são os verdadeiros riscos. “Foram precisas décadas para entender as doenças que o tabaco provoca e com os cigarros eletrónicos vai acontecer o mesmo”, diz a pneumologista, para quem os riscos associados a este tipo de cigarros sempre foram óbvios. “Sabíamos que havia riscos mas não sabíamos se eram maiores, menores ou iguais aos do tabaco tradicional. Percebemos agora, com estes casos todos, que esse risco é diferente, e o que está a acontecer é assustador.”

O que diz a DGS sobre os cigarros eletrónicos?

A posição da Direção-Geral da Saúde não destoa das acima apresentadas. Em resposta às perguntas do Expresso, a DGS diz que “embora não esteja cientificamente comprovado que os cigarros eletrónicos são menos prejudiciais para a saúde”, os seus efeitos a curto prazo começam agora a ser conhecidos, e têm que ver com o “manuseamento indevido da nicotina, explosões dos equipamentos ou as pneumonias, como parece ser o caso no atual surto registado nos EUA”. O seu uso pelos jovens “é muito preocupante”, diz a DGS, referindo-se à existência de estudos que mostram que adolescentes que experimentam estes cigarros têm maior risco de vir a fumar outros produtos do tabaco.

E embora as emissões dos cigarros eletrónicos apresentem “uma menor complexidade química, comparativamente ao cigarro tradicional, não são totalmente isentas de substâncias tóxicas e cancerígenas que vão além da nicotina”, e que são “determinadas pelo tipo de aromatizantes e o tipo de dispositivo eletrónico de aquecimento”. Assim, não “é possível garantir que os cigarros eletrónicos constituem uma alternativa aos cigarros convencionais com menos riscos para a saúde” e que sejam eficazes na cessação tabágica.

Quantos portugueses utilizam cigarros eletrónicos?

Segundo noticiou recentemente o “Jornal de Notícias”, os portugueses estão a consumir o dobro do tabaco eletrónico, tendo a receita fiscal da venda de líquidos com nicotina passado de 682 mil euros, em 2017, para quase 1,4 milhões, em 2018. Há que olhar para estes números com algumas reservas porque, e como foi referido, na altura, “em 2018 houve tabaco com imposto pago no ano anterior a circular até final de março” e isso “pode ter afetado os valores do ano”. Segundo números apresentados no Programa Nacional para a Prevenção e Controlo do Tabagismo, de 2017, os cigarros foram o produto de tabaco mais consumido pelos adolescentes e jovens (29,8%) nos 12 meses anteriores à publicação do programa, seguidos pelo tabaco de enrolar (18,7%) e pelos cigarros eletrónicos (12,8%).

Segundo um outro estudo, realizado em 2014 pelo Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge, e para o qual foram utilizados dados de pessoas com idade igual ou superior a 15 anos, estimou que a prevalência de utilizadores de cigarros eletrónicos seja de 1,3% nos homens e 0,8% nas mulheres, encontrando-se as maiores percentagens nos homens do grupo etário dos 25-34 anos.