A memória antiga do jogo do Monopólio guardava o Rossio como a propriedade mais cara e que, em conjunto com a Rua Augusta, compunha o bairro com casas e hotéis a preços mais elevados... O hotel chegava ali aos 20 contos, isto no tempo do escudo... No tabuleiro havia ainda ruas, avenidas e praças em Setúbal, Braga, Porto e outras cidades... Hoje já há variações do Monopólio com o tempero de filmes ou séries de televisão, desde os universos de “Star Wars” a “Stranger Things”. No Monopólio moldado segundo a série “A Guerra dos Tronos” o Rossio deu lugar, sem surpresa, a Porto Real, completando o ‘bairro’ como Braavos, a capital financeira do outro lado do mar. O segundo ‘bairro’ mais caro — e muitas vezes um dos estrategicamente mais rentáveis no jogo — junta propriedades do Norte (Winterfell, Pyke e Castelo Negro)... E o ‘bairro’ mais barato une espaços a norte da muralha. No lugar das estações ferroviárias encontramos quatro grandes ‘casas’: Stark, Lannister, Targaryen e Baratheon... E quem passar pela casa de partida recebe 200 moedas... A mecânica clássica mantém-se, o tabuleiro e as peças mudam o design, mas o entusiasmo surge num tempo diferente em que, após algumas décadas de progressiva passagem para o digital do prazer de jogar, os jogos de tabuleiro voltam a surgir com uma pujança que há muito não conheciam. Há jogos novos e diferentes, para diferentes idades, gostos e aptidões. Há clubes e associações de jogadores. Há encontros regulares. Há presença garantida na Comic Con. E até espaços noturnos que tomam os jogos como uma das suas marcas de identidade.
“Os jogos de tabuleiro são uma alternativa para as pessoas estarem juntas e conviverem”, explica ao Expresso Rodolfo Lopes, da Devir, uma das marcas portuguesas a explorar há já algum tempo este universo. “Por um lado, os pais querem que os filhos se afastem de um tablet ou de um computador e, por outro, há uma vertente social, porque as pessoas gostam de estar umas com as outras.” Mas essa não é a única diferença, num tempo em que as redes sociais e os dispositivos de comunicação podem promover ligações mais virtuais do que reais. É que os jogos de tabuleiro atuais são diferentes dos de outrora. Se no caso do Monopólio ligado a “Guerra dos Tronos” o que encontramos é uma “nova roupa” temática para um jogo que não se altera, a verdade é que a oferta atual é mais variada e desafiante do que nunca.
Nos jogos de tabuleiro modernos, geralmente designados como eurogames (dada a origem alemã de alguns dos primeiros fenómenos), “a sorte é minimizada”, explica Rodolfo Lopes. “Existe mais estrutura, uma estratégia que tem de ser aplicada e, também, um tipo de qualidade, seja a memória, a perceção, a rapidez cognitiva”. São jogos “mais baseados em capacidades que podem ser desenvolvidas e aproveitadas pelos jogadores em vez de serem coisas completamente aleatórias”. E assim, “sendo jogos mais estruturados, regem-se por regras mais equitativas”. Há, naturalmente, jogos segmentados por idades “porque alguns exigem compreensão de um pensamento estratégico, uma maturidade”, sublinha. E dá como exemplo Catan, que descreve como o “pai dos jogos de tabuleiro modernos”, que é um jogo para maiores de dez anos porque “exige saber fazer uma gestão de recursos”.
Não desapareceram de circulação os mais clássicos jogos temáticos nem os party games mais célebres. Mas o verdadeiro surto de entusiasmo está em novas propostas de estratégia como Resistance (jogo sobretudo apoiado por cartas, onde agentes infiltrados tentam impedir ações da resistência) ou Marte (que coloca várias equipas a lutar pelo sucesso na colonização do planeta vermelho). Twilight Struggle explora ecos dos tempos da Guerra Fria. Há jogos com diversas variações temáticas, como são os casos de Exit ou Carcassone. E não faltam até temperos portugueses em jogos como Caravelas, Coimbra, Estoril 1942 — A Game of Spies ou Fado: Duetos e Desgarradas. A oferta é vasta, muito vasta... E Rodolfo Lopes confirma que o mercado dos jogos de tabuleiro está em expansão à escala mundial e que em Portugal “está também em franco crescimento”. Os maiores centros urbanos têm uma maior presença de atividades, com grupos e clubes de jogos de tabuleiro. No entanto “os clubes e associações querem organizar ações em bibliotecas, mas às vezes também em restaurantes e pastelarias... Os jogos de tabuleiro estão a aparecer por todo o lado, inclusivamente nas escolas”, acrescenta.
Há lojas especializadas como a Kult Games ou a Arena (ambas em Lisboa), a Arena (Porto), U Store (São João da Madeira), Diver (Coimbra) ou Mebo Games (Alcabideche), entre outras mais, algumas com existência online, como a Puzzle Out. E existem já vários grupos e associações de jogadores. Um dos exemplos é o Grupo de Boardgamers, de Lisboa, que, uma vez por mês, organiza encontros no Instituto Superior Técnico. O próximo encontro está marcado para o fim de semana entre 21 e 23 de junho, no Pavilhão de Civil. Estes encontros são abertos ao público em geral e “saber as regras dos jogos não é um requisito, pois haverá sempre alguém disponível para as explicar rapidamente”, explicam no seu site. O grupo de Leiria, por sua vez, escolhe o primeiro sábado de cada mês para encontros de jogadores na Escola Primária dos Capuchos.
Esta presença de alguém que explica os jogos a quem os queira jogar em espaços públicos é uma das chaves do sucesso da Sala, um pequeno bar mesmo em frente à Assembleia da República (Lisboa), que, além da sua “faceta de petiscaria” e de promover “eventos sobre cinema, música, teatro ou storytelling”, tem os jogos como um polo de atração. Cabe ali a Vasco Monteiro ser um cicerone perante a oferta de jogos, ajudando os grupos de amigos a escolher, ensinando-os depois a jogar. Vasco explica ao Expresso que o principal conceito da Sala “é ser uma sala de estar” e, “tal como existem jogos nas nossas salas de casa” ali também quiseram “que eles tivessem o seu lugar”. Quando chegam “grupos um pouco maiores de pessoas sem muita experiência”, costuma recomendar Mysterium, um jogo “onde há um jogador que não pode falar mas que tem de dar pistas aos outros sobre quem é o seu assassino, usando apenas cartas com desenhos, ou então o codenames”. Quando são grupos mais pequenos e que querem um jogo rápido, recomenda Sushi Go, que “é muito divertido e ainda tem o bónus de as cartas serem desenhos de sushi!”. Para os mais experientes, “a oferta é cada vez maior”. Uma sugestão? Joguem Resistance... É viciante e obriga a hilariantes jogadas de bluff. Vasco confessa ter Pandemic como um dos seus jogos preferidos. Neste, que “foi um dos responsáveis pela grande explosão de novos jogos dos últimos anos, os jogadores têm de trabalhar em conjunto para impedir que uma epidemia se espalhe e acabe com todos os humanos... O bom deste jogo é que estamos todos a lutar pelo mesmo objetivo e, mesmo assim, a tensão que sentimos ao ver a doença a espalhar-se é enorme”. Outro dos seus preferidos é Power Grid, um jogo “complexo em que o jogador constrói centrais de energia e compra matéria-prima para transformar em eletricidade”. Uma vez por mês, na primeira quinta-feira, há ali uma “noite de jogos na Sala”, que já tem presenças regulares e que chama sempre mais alguns curiosos. E, como descreve Vasco, “durante o evento acabam sempre por se criar grupos de pessoas que antes não se conheciam, mas que se juntam à volta de um jogo de tabuleiro”.
A presença dos jogos de tabuleiro é atualmente inevitável em grandes encontros ligados às indústrias da cultura pop e, por isso mesmo, no Comic Con, têm um espaço garantido. Paulo Cardoso, CEO do Comic Con Portugal, explica ao Expresso que muitos universos da cultura pop começaram como jogos de tabuleiro... De exemplos como Dungeons & Dragons ao Monopólio há realidades “que nascem assim e se transformam em produtos conhecidos por massas”, notando que “todos estes universos fazem sentido estar na Comic Con”, que este ano voltará a ter no recinto um espaço dedicado a jogos de tabuleiro e jogos de cartas. Na edição deste ano, a decorrer entre os dias 12 e 15 de setembro no Passeio Marítimo de Algés, “haverá também workshops e masterclasses sobre como jogar”. A organização está a agora a “definir algumas marcas portuguesas que vão estar presentes, que, por sua vez, vão mostrar como se pode jogar e interagir, quais serão as novidades... E haverá painéis em que isso vai ser explorado”. Na edição de 2018 o espaço era já expressivo e disputado, juntando a possibilidade de compra a uma série de mesas onde nunca faltava quem estivesse a jogar. E aí tanto havia iniciados como jogadores mais experientes. Porque, como repara Rudolfo Lopes, ao mergulhar no universo dos novos jogos, é preciso ter a noção de que “não vale a pena começar pelo jogo x sem antes ter aptidões para um jogo dessa dificuldade”. E fica a sugestão: “Se começar por algo mais acessível de que goste, o jogador vai incorporando a noção de como estes jogos funcionam e o percurso que vai tomar a seguir vai ser mais fácil e satisfatório.” Está na hora de agitar os dados, olhar para o tabuleiro das possibilidades e jogar entre amigos.