Um agente que nunca foi identificado gritou: “Apanhem aquele, que tem a mania que é esperto.” Flávio Almada já tinha virado as costas para se ir embora mas foi impedido por um polícia fardado. “Perguntei-lhe se tinha feito alguma coisa, se lhe tinha dito alguma coisa que o ofendesse. Ele parou e olhou para mim, como se percebesse que não tinha de fazer nada. Apareceram os colegas dele e fui logo agredido. Mandaram-me ao chão, levei pontapés na cabeça, socos e começo a ouvir uma voz vinda da minha direita, distorcida, ‘ó filho da puta’.”
Flávio Almada tem 36 anos, nasceu em Cabo Verde e tem nacionalidade portuguesa. É licenciado em Sociologia e coordenador da Associação Moinho da Juventude, uma das maiores e mais antigas do Bairro da Cova da Moura, na Amadora, que providencia educação e alimentação a crianças e luta pela integração dos jovens.
No dia 15 de fevereiro de 2015, Bruno Lopes, um rapaz do bairro, foi detido pela PSP. A polícia acusou-o de atirar pedras ao carro patrulha, algo que se veio a verificar em tribunal ser falso. Os agentes dispararam balas de borracha que atingiram uma moradora no peito e numa perna. “Eu nem sabia o que tinha acontecido, não vi, nem ouvi os disparos”, recorda esta semana Flávio na biblioteca da associação, dois dias depois de o Tribunal de Sintra ter condenado nove agentes da PSP por terem sequestrado, agredido e insultado seis moradores da Cova da Moura. Flávio foi um deles.
“Já tinha ido à esquadra para saber de um ou de outro rapaz que é detido e nunca houve qualquer problema. Não estava assustado nem com medo. Sabia que aconteciam algumas coisas, já fui encostado à parede e levado à esquadra, mas nunca imaginei que pudesse acontecer o que aconteceu.” E o que aconteceu foi, primeiro, muito rápido e depois, “durou uma eternidade”.
“Quando chegámos lá dissemos boa tarde, que éramos do Moinho e que queríamos falar com o responsável. A resposta não foi nada acolhedora, houve logo agressividade. ‘Aqui vocês não entram’, disseram. E chamaram os colegas.” Segundo o acórdão do tribunal, os polícias saíram da esquadra, formaram um cordão e dispararam um tiro de shotgun que atingiu Celso Lopes, também da associação. Os quatro moradores que se dirigiram à esquadra foram agredidos e um quinto, que passava ali por acaso e é deficiente, foi agredido pelo agente Machado, o único a ser condenado a uma pena de prisão efetiva porque já tinha uma condenação anterior pelos mesmos motivos. Nesse dia, a PSP diria que tinha evitado uma “invasão” da esquadra, algo que o tribunal também disse ser mentira. Flávio foi um dos detidos.
“Quando fomos lá para dentro, foi... é indesculpável. Porque no primeiro momento podem ter tido uma péssima leitura dos acontecimentos, mas a partir daí não há desculpa. Foi tortura. Um agente chegou e disse: lixo é para o chão. E atirou-me de cara para o chão. Não conseguia ver a cara deles, porque não davam hipótese de os olharmos. São bons nisso. Pisavam-nos, batiam-nos. Éramos os tapetes deles. O mais lamentável é que em nenhum momento houve um agente que dissesse isto está errado. Parem. Não houve um. ”
Demasiado inchado para ser fotografado
Durante o julgamento, e apesar dos testemunhos coincidentes das vítimas, o procurador Manuel das Dores deixou cair os crimes de tortura e racismo. “Foi a pior coisa que ouvi em tribunal: que não houve sofrimento suficiente para configurar um crime de tortura. Tinha que ficar sem uma perna ou braço?”
Flávio esteve dois dias “que pareceram uma eternidade” detido, até ser libertado pelo tribunal. O MP chegou a pedir que ficasse em prisão preventiva pela invasão que, afinal, não chegou a acontecer. “A primeira vez que vi como tinha a cara não me reconheci. Foi um choque. Estava desfigurado, inchado. Quando ainda estava preso, levaram-nos a outra esquadra para sermos fotografados e o polícia que lá estava disse que não dava para tirar a fotografia, porque a minha cara estava mal demais, não ia dar para um reconhecimento. Passei dias com marcas de bota na cara.”
Ainda segundo o acórdão do coletivo de juízes presidido por Ester Pacheco, os agentes da PSP proferiram vários insultos racistas como “Ainda não morreste? E ainda por cima és ‘pretoguês’” ou “pretos do caralho, vão para a vossa terra”. Mas só um agente foi condenado a dois meses de pena suspensa por este tipo de insultos. “Se o que aconteceu foi racismo? Claro. Senão porque é que iam falar que queriam exterminar a nossa raça? E que este país não é nosso? E começaram a dizer que íamos morrer como o Angélico. E nós uns para os outros: quem é esse Angélico? Só depois é que percebemos que era o cantor. E só então percebemos a neurose.”
Durante o julgamento, todos os 17 polícias acusados negaram a prática de qualquer crime e nove deles foram absolvidos, grande parte porque as vítimas não conseguiram identificar os agressores. As sessões de julgamento foram acompanhadas por polícias à civil que, depois da leitura da sentença que condenou sete polícias a penas suspensas — incluindo o comandante da esquadra, Luís Anunciação — e um a uma pena de prisão efetiva, formaram mais um cordão, desta vez para aplaudir os camaradas caídos em desgraça. Um sindicato a que quase todos os polícias condenados pertencem anunciou uma coleta para pagar as despesas jurídicas com os recursos. Nenhum responsável da PSP criticou os polícias ou a decisão judicial. “Não digo que todos os polícias sejam racistas, mas há um padrão de comportamento racista na polícia. O tribunal foi muito leve. Se um de nós tivesse tocado na farda de um polícia onde é que estávamos? Estávamos fechados. O que seria justo. Não podemos fazer isso. Mas aqueles indivíduos, depois do que fizeram, deviam ter apanhado penas de prisão efetivas.”