Eram outros tempos. A primavera da vida de Carlos corria prazerosamente. Eram os dias da fantasia, sem fronteiras para a ilusão desmedida. O medo ficava em casa, enquanto o universo cabia todo nas ruas de Leiria, abertas como um admirável mundo novo, pronto a ser explorado através das brincadeiras incautas. A imaginação fazia uma baliza com duas pedras pousadas sobre o chão, onde Carlos jogava à bola e à apanhada dos sonhos. “Tive uma infância muito feliz naquela cidade mágica”, recorda ao Expresso. Depois perfilou nos escalões de formação — dos iniciados até sair dos juniores em 1968 — do Sport Clube Leiria e Marrazes, emblema no qual, décadas depois, também Rui Patrício se iniciou como um ponta de lança apontado às defesas contrárias, muito antes de se render à arte de voar entre os postes, e até Lisboa, em 1999, para manter as redes do Sporting imaculadas.
Eram outros tempos, quando a paixão pelo desporto-rei passeava de mãos dadas com o gosto pelo andebol na vida de Carlos Neto, atualmente com 68 anos. “Ainda estive para ir jogar para a Académica, mas, naquela altura, era difícil e tive de abdicar. Acabei por ir estudar Educação Física, por ser o que eu mais gostava”, conta o professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana (FMH) da Universidade de Lisboa. Começou a lecionar em 1976 e muito mudou desde então. “Há mais de quarenta anos já eu alertava que no futuro iríamos ter uma sociedade com problemas sérios de saúde física e mental”, assevera o especialista, baseado no facto de as nossas crianças “serem muito sedentárias e de estar, cada vez mais, em decadência a cultura de brincar na rua”, autêntica rede social ancestral, onde momentos de felicidade eram partilhados, entre sorrisos despojados de emojis, com toda a comunidade de amigos reais de palmo e meio.
As previsões de Carlos Neto confirmaram-se e Portugal é, atualmente, em termos percentuais, o país da União Europeia em que menos se faz exercício, de acordo com dados compilados pela Fundação Manuel dos Santos. O cenário não é animador e revela que 34% dos jovens, entre 15 e os 24 anos, não praticam desporto. Os números aumentam à medida que a idade avança, com uma abstinência física de 54% dos portugueses a partir dos 25 anos e até aos 39. A ternura dos 40 indica que 71% dos cidadãos nacionais deixam a prática desportiva no banco, enquanto 85% das pessoas com mais de 55 não vão a jogo para promover a cultura do corpo.
A falta de tempo é o principal motivo no plantel de razões que relegam o desporto para a reserva dos portugueses, invocado 37% das vezes pelos mais jovens, 59% no caso de cidadãos entre os 25 e os 39 anos e com uma taxa de 60% para os indivíduos com idades compreendidas entre os 40 e os 54.
A escassez de motivação é o segundo fator mais recorrente, condutor direto até a uma realidade em que o sedentarismo impera. “Temos estudos que nos demonstram que, nos últimos 40 anos, houve um decréscimo enorme, em Portugal e em todo o mundo, da atividade física, associada a um aumento de desordens mentais”, afirma Carlos Neto, enumerando como problemas titulares “a ansiedade, a depressão, o défice de atenção e até ocorrências de suicídio, com uma taxa preocupante entre os 18 e os 25 anos”.
Olhando ainda para o algodão numeral, que não engana, vemos que no nosso país existem 624 mil atletas federados, dos quais apenas 185 mil são mulheres. A distribuição por modalidades é também bastante díspar: o futebol agrega 176 mil praticantes, enquanto o basquetebol encesta 41 mil atletas, um valor, ainda assim, bastante superior aos quase 19 mil dedicados ao atletismo e à ‘stickada’ ténue de 2000 pessoas que preferem o hóquei, uma modalidade com bastante tradição em Portugal.
Os dados da Fundação Francisco Manuel dos Santos revelam igualmente um quadro preocupante: o do abandono desportivo. Dos 624 mil federados muitos ficam pelo caminho, pois quase 364 mil atletas integram os escalões de formação mais precoces, notando-se uma queda abrupta na passagem para os juniores, quando o valor decai para 48.875 praticantes.
“Isto quer dizer que se está a fazer uma especialização extemporânea e sem sentido. Tenta-se que as crianças adquiram técnicas e conhecimentos no âmbito de uma modalidade antes de fazerem uma formação motora global”, adverte Carlos Neto. “Tem-se uma visão mais desportivista do que é o trabalho de formação, em que o foco está mais colocado na obtenção de medalhas do que no processo. É preciso que, nas primeiras idades, se faça desporto por prazer”, argumenta, alertando para os riscos da pressão e expectativas elevadas colocadas sobre os jovens. “Não se fazem campeões em laboratório. Os atletas não se formam com métodos tão rígidos. Todos os grandes desportistas tiveram infâncias felizes. Quem não tem uma infância feliz não pode ter sucesso na vida adulta”, complementa o docente universitário.
“As crianças”, prossegue Carlos Neto, “não brincam o suficiente, e 70% dos portugueses brincam menos de uma hora por dia, o que é lamentável”, defensor de que os petizes devem ter o direito a “explorar, descobrir, fazer uma aprendizagem inteligente e não meramente mecânica”, promovendo o contacto com a natureza. “Aqueles que trepam às árvores e que sobem muros são normalmente os que têm sucesso mais tarde”, assegura o professor da Faculdade de Motricidade Humana, introdutor de um novo tema para o qual, diz, ninguém quer olhar: o do bullying no desporto, flagelo que atinge os 11% nas camadas jovens. “Há muitas crianças que são vítimas, ora porque são gordinhos ora porque têm menos jeito. O desporto é uma pirâmide seletiva e, para chegar ao topo, muitos ficam para trás. E ninguém olha para esses. Há jovens que ficam frustrados e traumatizados por experiências negativas durante a formação”, aponta o educador.
O problema, defende Carlos Neto, está na base, logo na primeira fase da vida. “A rua está em vias de extinção. Olhamos para a cidade e já não vemos crianças a brincar. Passeiam-se mais os cães do que as crianças”, denota o investigador da FMH. “Temos um ambiente muito segregador, muito protecionista e com miúdos superprotegidos, entregues a uma sociedade digital nova, que cria uma bomba explosiva que leva à inatividade física. É aquilo a que chamo iliteracia e analfabetismo motores”, acrescenta o especialista, que coloca em evidência o “enorme desafio de termos o corpo a viver na ponta dos dedos”.
É o perverso reflexo da “cultura do tudo dado e tudo pronto”, assim define o perito em Educação Física, com uma experiência de quatro décadas a trabalhar em campo com meninos dos três aos dez anos. “Tenho crianças que não sabem correr, não sabem atar os sapatos, não sabem saltar à corda ou saltar ao pé-coxinho”, ilustra Carlos Neto, para quem estamos a produzir jovens formatados. “Isto mata a capacidade adaptativa e tira a capacidade de lutar por objetivos”, defende.
Muito há a fazer para pôr os portugueses a mexer, de preferência desde tenra idade, valorizando e repensando a forma como o desporto escolar está estruturado, que abrange apenas 20 a 25% dos alunos. “É preciso ter uma educação física escolar robusta, bem organizada, com horas suficientes para estimular as crianças que vivem neste aprisionamento”, avalia o professor catedrático. “Temos, em Portugal, uma cultura mais associativa, sustentada nos clubes locais, mas a base tem de ser a escola, porque é lá que todos têm lugar”, conclui Carlos Neto.