Sociedade

Os coletes amarelos portugueses aos olhos de quem organizou as maiores manifestações do país

Movimentos “Geração à Rasca” e “Que se Lixe a Troika” organizaram as maiores manifestações dos últimos anos que também cresceram nas redes sociais, como os protestos “Parar Portugal” previstos para esta sexta-feira. Mas aos olhos de quem organizou aquelas manifestações, a estes protestos falta agora “clareza”, “objetivos concretos” e rostos. E é aí que reside o risco

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Há dez anos, um buzinão na Ponte 25 de Abril servia de protesto contra o aumento dos combustíveis e do custo de vida. Convocado pelo Movimento dos Utentes dos Serviços Públicos (MUSP), estendeu-se depois a outras cidades. Passavam então precisamente 14 anos do grande bloqueio da ponte de 1994, numa reação contra o aumento das portagens de 100 para 150 escudos.

Já em 2011, a 12 de março, as manifestações da “Geração à Rasca” mobilizaram mais de 100 mil pessoas em Lisboa, com um objetivo concreto: a luta contra a precariedade. Um ano depois, a 15 de setembro, o movimento “Que se Lixe a Troika” punha nas ruas um milhão de pessoas.

Os organizadores desses protestos e manifestações veem bastantes diferenças na forma como esses eventos foram planeados, se comparados com a organização dos protestos previstos para esta sexta-feira, inspirados nos “coletes amarelos” em França e que prometem “parar Portugal”, criando bloqueios em vários pontos do país e cortando os principais acessos a Lisboa, incluindo a Ponte 25 de Abril.

“Há uma diferença fundamental na organização destes protestos e acho que é a sua principal característica: a falta de clareza. Falta clareza em saber quem os está a organizar, porquê e para quê”, defende João Camargo, um dos organizadores do movimento “Que Se Lixe a Troika”.

“No ‘Que se Lixe a Troika”, começámos com um manifesto assinado por várias pessoas. Era contra a austeridade, o desemprego, a precariedade e tinha pontes claras com os precários, os desempregados ou os reformados. Não é que hoje esteja tudo resolvido e não haja razões de descontentamento, mas não vejo que este protesto corresponda a um grupo social.”

Nos dois manifestos já divulgados nas redes sociais – um do movimento “Vamos Parar Portugal” e outro do movimento “Coletes Amarelos em Portugal” – são listadas várias exigências e reivindicações que vão desde o combate à corrupção, ao aumento do salário mínimo, diminuição dos impostos, reforço do SNS, redução do número de deputados, igualdade perante a Justiça ou fim dos privilégios da classe política.

É na “falta de clareza” e na “mistura” de várias reivindicações que João Camargo, que também fez parte dos Precários Inflexíveis, vê espaço para a extrema-direita “empolar estes protestos e dar-lhes uma orientação política”.

João Labrincha, um dos organizadores da manifestação “Geração à Rasca, que decorreu ainda durante o governo socialista de José Sócrates e antes da entrada da Troika, concorda, apesar de também identificar “reivindicações muito legítimas” aos protestos previstos para sexta-feira.

“Vemos as desigualdades elevadas, o peso dos impostos a sobrecarregar as classes mais baixas e a corrupção que já não é nova mas endémica. É preciso que as forças democráticas vão ao encontro dessas reivindicações, diminuindo a pobreza, as desigualdades e a precariedade.”

O problema está no facto de serem exigências muito dispersas. “Essa é a base do populismo”, afirma. “A maior parte das pessoas envolvidas não está politizada, não tem noção das consequências deste tipo de propostas e tem dificuldade em identificar as investidas e aproveitamento político da extrema-direita”, defende João Labrincha, considerando que há um “apelo genérico” ao antipartidarismo.

“Nós identificámo-nos como um movimento apartidário, mas não apolítico e muito menos anti-partidarista. Apelámos a mais participação política da população, por exemplo através de associações ou assembleias locais. A ideia de que os partidos são todos iguais é muito perigosa, porque põe em causa a democracia.”

Antes da manifestação da “Geração à Rasca”, lembra, os organizadores mandaram uma carta de convite a cada um dos deputados, “da esquerda à direita”, e depois apresentaram propostas concretas “relacionadas com os recibos verdes, os contratos a termo e as empresas de trabalho temporário”.

O que sai das redes sociais

Rui Monteiro, à frente do MUSP, que em 2008 apelou ao buzinão da Ponte 25 de Abril, critica o facto de ser “difícil” perceber claramente o que move estes protestos. “Quando os cortes nos serviços públicos foram absolutamente radicais, onde estavam? Estamos longe de ter serviços públicos em condições e com qualidade, mas estivemos a caminhar em direção ao abismo e agora, apesar de tudo, a velocidade abrandou.” A reabertura de tribunais é um dos pontos positivos que refere, apesar da “situação muito problemática” da CP.

“Este movimento dos protestos agendados para sexta-feira é muito inorgânico e não se percebe quem são os organizadores, ao contrário do que aconteceu com outras grandes manifestações e protestos. É verdade que as pessoas estão desencantadas e cansadas. Mas não se percebe o que é que se pretende em concreto, não há rostos nem objetivos claros, apenas ideias com as quais toda a gente está de acordo.”

As grandes manifestações de 2011 e 2013 também nasceram e foram promovidas nas redes sociais, mas focavam-se num único evento e movimento. Desta vez, são vários os grupos e eventos no Facebook, o que não permite ter uma ideia tão clara da adesão e da forma como estão a ser organizados.

“Acho que vivem mais das redes sociais do que na altura do Que se Lixe a Troika”. E a maior parte da organização está a ser feita através de grupos do WhatsApp e de uma forma que não é pública”, diz João Camargo. “Ao contrário dos coletes amarelos em França que tinham objetos claros e concretos, estes não têm. São uma espécie de grito.”