Sociedade

António Fogaça, espião torturado em Londres

Preso e torturado na Torre de Londres, entre 1579 e 1582, António Fogaça era um espião português que também serviria Castela e deixaria escrito um desabafo na sala de tortura. Personagens famosas no seu tempo e praticamente esquecidas, umas menos outras mais, é do que trata esta rubrica de pequenas biografias

Poucos portugueses estiveram presos na Torre de Londres, mas um deixou lá a marca da sua passagem: uma só palavra gravada num instrumento de tortura. António Fogaça, homem influente a morar na capital britânica e que no tempo do reinado de D. Sebastião tratou da manutenção de paz entre Portugal e Inglaterra, sendo também espião de Castela, meteu-se no conflito entre católicos e protestantes e perdeu a liberdade e a fortuna.

Em 1930, o jornalista e escritor Reinaldo Ferreira visitou a Torre de Londres, onde estava patente uma exposição de instrumentos de tortura - entre 1500 e 1600, os prisioneiros foram ali sujeitos às mais incríveis formas de convencimento -, e descobriu, num "mazorro" para "estoirar braços", "escrito ou melhor riscado com o bico dum prego ou algo semelhante, um vocábulo inconfundivelmente português, uma obscenidade, o mais lusitano e clássico dos palavrões... E é pena não vos poder dizer qual".

É sabido que se tem de dar um desconto às palavras deste homem de jornais de imaginação muito fértil, mas ele afirma ter contactado o conservador do museu e que este lhe explicou que os juízes mandavam fechar os presos na sala da tortura, antes e nos intervalos dos interrogatórios, para os convencer a falar e a aceitar as acusações e que havia correntes eriçadas, "e muitos, na aflição e na perspectiva da dor, riscavam com esses pregos desabafos curtíssimos".

Clark Petterson disse que gastara horas a refletir sobre o dito vocábulo. "Todos estão em inglês exceto dois; e destes dois, um está em alemão e calculo quem o tivesse feito; o outro, aquele que lhe interessa, ignorava eu a que idioma pertencia. E já que o sr. diz que é palavra portuguesa, posso facilmente informá-lo se algum português sofreu tormentos na Torre de Londres, na época em que lá estavam esses aparelhos." Dois dias depois, revelava o nome, mas não sabia adiantar-lhe mais nada.

António Pantaleão Fogaça - será assim o seu nome completo, e o seu nascimento terá ocorrido na cidade do Porto por volta de 1510; cedo se casou com Isabel Ribeiro de Vabo, com quem teve, em 1530, Maria do Vabo Pimentel, que, por sua vez, se casará com Brás de Anhaia Galego Soromenho, dando origem à família Soromenho em Portugal. E terá morrido em 15 de março de 1587, cinco anos depois de ter sido libertado devido à ação do embaixador do rei Filipe II de Espanha e já I de Portugal.

Em 1569, depois de uma viagem a Portugal, onde terá acertado uma missão com o regente, cardeal D. Henrique, Fogaça escreveu a William Cecil, na altura secretário de Estado, a oferecer-se para intermediar o conflito suscitado pelo comércio clandestino dos ingleses nas possessões portuguesas. Juntara um papel em que era recomendado como pessoa idónea para negociar a amizade entre príncipes; um mês depois, a rainha de Inglaterra passava-lhe um passaporte. E, em dezembro, desembarcava em Portugal.

Não chegou a ser recebido pelo conselho de Estado, mas obteve resposta positiva por parte de D. Sebastião, que assumira o trono nesse ano. Ao mesmo tempo, manteve conversações com o embaixador castelhano em Lisboa. Em fevereiro, Fogaça estava de volta a Londres, com três navios carregados de especiarias, o "maná" que os ingleses pretendiam poder negociar diretamente, mas cujo comércio Portugal não deixava sair de Lisboa. E assim prosseguiu com as negociações entre os dois reinos, sob a vigilância de Castela.

Fogaça foi preso em 1579 quando embarcava em Londres com destino ao país natal, talvez por denúncia. As autoridades resolveram revistá-lo e descobriram uma série de documentos que indicavam a atividade de espionagem ao serviço do inimigo católico. E que estava ao lado da rainha Maria da Escócia conspirando contra a irmã Isabel. Que, aproveitando o seu relacionamento com conselheiros da monarca britânica, passara muita e primordial informação ao duque de Alba quando este ocupou e governou os Países Baixos. Que informara e influenciara durante anos os embaixadores portugueses e castelhanos.

Em 1582, chegou aos ouvidos de Filipe que António Fogaça se encontrava preso e lhe pedia ajuda, tendo em conta os oito anos que trabalhara a seu favor. O rei pediu ao embaixador em Londres que apurasse o assunto. Este confirmou a prisão e o serviço do espião, adiantando que Fogaça se mantivera fiel mesmo sob tortura. O monarca deu-lhe ordem para que diligenciasse no sentido de libertar o português, o que significava pagar a estada na prisão e as dívidas que ele entretanto contraíra não só para obter informação como para sobreviver numa altura em que o dinheiro lhe escasseava.