Sociedade

O batismo dos ciclones e uma medalha pela ajuda que deu na fuga dos portugueses

Saiu de Portugal quando tinha 20 anos, hoje tem 52. Trabalhou numa estufa de flores, numa fábrica de cadeiras, nas obras e hoje é motorista de camiões numa ilha das Caraíbas, onde durante uma semana as famílias se mudam para a praia e até levam com elas a televisão. Armindo Fernandes já conheceu a fúria dos ciclones e, sem hesitar, acolheu em sua casa os portugueses que tiveram de fugir. Esta é a terceira história da segunda série “Em Pequeno Número”, que o Expresso começou a publicar há dois anos e que relata a vida dos portugueses que vivem em regiões em que quase não os há

Armindo Fernandes (à direita) e José Rodrigues (à esquerda), os dois portugueses condecorados pelo Estado português
Armindo Fernandes/DR

No dia em que recebeu a chamada do amigo José Rodrigues a pedir-lhe ajuda por não conseguir dar resposta a todos os portugueses que chegavam desamparados à ilha de Guadalupe, vindos de outras ilhas das Caraíbas devastadas pelos ciclones, Armindo não hesitou. “Peguei no carro e fui com a minha mulher ao encontro dos portugueses. Eu e o meu amigo José Rodrigues decidimos por nós mesmos organizar tudo. Demos dormida nas nossas casas e em casa de amigos e familiares.”

Tudo aconteceu no início do mês de setembro: o ciclone Irma passou pelas Caraíbas no dia 5, seguido por mais dois ciclones na semana seguinte. “Na passagem do Irma, a ilha de Guadalupe pouco sofreu mas em todas as ilhas ao lado foi um desastre. Foi o maior ciclone de todos os tempos”, recorda o português de 52 anos, a viver há três anos na ilha caribenha de Guadalupe. “As Barbudas, Antígua, São Martinho e São Bartolomeu foram destruídas por completo. Um horror.”

Naquela semana, os portugueses começaram a juntar-se na ilha de Guadalupe, de onde mais tarde viriam a ser retirados por um avião da Força Aérea. “Demos-lhes apoio psicológico, para eles verem que não estavam sozinhos, demos orientações para saberem onde dormir, comer ou apanhar um táxi e também demos apoio em termos de saúde”, conta Armindo, lembrando que havia até uma mulher grávida de oito meses que entretanto teve o bebé em Portugal. “Foi tudo feito de coração e com muito carinho. Com esta experiência ganhei muitas amizades.”

Quando o C-130 da Força Aérea chegou a Guadalupe para trazer os portugueses, “o trabalho estava feito a 90% e só precisaram de controlar os papéis e embarcar”. Houve 72 pessoas a regressarem no avião português e outras 40 a fazer a viagem para Portugal através de Paris.

O gesto valeu a Armindo Fernandes e a José Rodrigues uma medalha de mérito entregue a 31 de outubro pelo Secretário de Estado das Comunidades, José Luís Carneiro, em Portugal. “Os dois cidadãos portugueses proporcionaram alojamento, alimentação e transporte a diversos portugueses, inclusive nas suas próprias casas e nas casas dos seus familiares, revelando um extraordinários sentimento de solidariedade e altruísmo para com os seus compatriotas e o nosso país”, lê-se na nota então emitida pelo gabinete da secretaria de Estado.

Armindo Fernandes (à esquerda), o secretário de Estado das Comunidades José Luís Carneiro que acompanhou a retirada dos portugueses de Guadalupe, José Rodrigues (à direita) e os restantes membros da equipa que foi de Portugal
Armindo Fernandes/DR

O começo nas Caraíbas

Quando Armindo Fernandes chegou à ilha de Guadalupe, a 1 de janeiro de 2014, não imaginava o que teria pela frente. “O que aqui se passou foi uma experiência nova na minha vida: os ciclones. O batismo dos ciclones. E se pudesse escolher gostava de não voltar a viver mais nenhum.”

Em 2014, a mulher de Armindo arranjou colocação como enfermeira em Sainte Anne, cidade numa das duas ilhas de Guadalupe, que é uma região insular de França, no meio do mar das Caraíbas. “Saí de Portugal com 20 anos e fui viver para França. Comecei numa estufa de flores onde estive durante dois anos, depois trabalhei numa fábrica de cadeiras de madeira, depois numa casa de preparação e distribuição de jornais e revistas, depois nas obras como pedreiro e desde então sou motorista de camiões.”

E é como motorista que hoje trabalha, percorrendo a ilha nos seus trajetos. “Às seis da manhã estou de pé. Vivo a poucos quilómetros do trabalho. Quando chego a casa ocupo-me da horta e dos animais, sobretudo galinhas.”

A produção de babanas é uma das atividades da ilha
Charles Platiau/Getty

Armindo Fernandes conhece alguns portugueses a viver em Guadalupe e estima que a comunidade tenha cerca de 150 pessoas. Os números das Nações Unidas sobre os portugueses no mundo são mais altos, apontando para cerca de 470 portugueses a residir na ilha em 2017. Já em São Bartolomeu, de onde vieram muitos dos portugueses que fugiram aos ciclones, a comunidade é maior.

“Nas Caraíbas vive-se com o sol e a temperatura é agradável durante o ano inteiro.” Uma das fontes de rendimento é a produção de açúcar e de banana. “O que mais ocupa a população é a cana e os seus derivados como o rum ou os ponches.” Para além desta pequena indústria ligada ao açúcar, a economia da ilha está também dependente do turismo e da agricultura, com um nível de desemprego elevado, sobretudo entre os jovens.

A televisão na praia

Armindo e a mulher optam por manter os seus hábitos, até mesmo gastronómicos. "Tanto comemos pratos de França como de Portugal. Até mesmo pastéis de nata feitos em casa e bacalhau. Mas há pratos tradicionais, como o Colombo de Cabri. “É cabrito guisado com uma mistura que chamam massala e que é acompanhado com arroz e abóbora.” Nas festas normalmente é servido em folhas de banana e comido com as mãos. Há também o chamado ‘boudin’, chouriços de sangue, de bacalhau ou de lagosta.

As praias fazem parte do dia-a-dia da população
Getty

“Atualmente estão a decorrer as festas de Natal. As associações fazem as festas e as pessoas dançam, comem e bebem gratuitamente. Depois vem o Carnaval e os seus desfiles – os jovens colocam-se nas rotundas com máscaras de macacos e bloqueiam a estrada a dançar e pedir uma moeda. Depois na Páscoa as festas são na praia. As famílias reservam um local e levam tudo para a praia, até a televisão. Comem, bebem e dormem na praia durante uma semana.”

O plano que tem neste momento é ficar nas Caraíbas no mínimo por mais cinco anos. “Quando me for embora, vão fazer-me falta as boas frutas que se comem aqui, mesmo as que tenho no quintal.” Os maracujás, as mangas e as bananas, “que têm um gosto que não nada a ver com aquele a que estamos habituados” são os mais conhecidos, mas também junta à lista jacas, anonas ou fruta-pão. “E, claro, vão fazer-me falta as praias, o clima e o sol o ano inteiro.”

Sobre a ajuda que deu aos portugueses e que lhe valeu a condecoração recebida a 31 de outubro, Armindo Fernandes explica ter feito o que lhe ensinaram que devia fazer. “Estamos longe de casa e temos de ser solidários. Somos, primeiro de tudo, portugueses.”

texto atualizado às 13h03