Exclusivo, luxuoso e extravagante. E também simples e harmonioso. Estas foram as principais características referidas por grande parte dos chefes que participaram nos três dias do Culinary Extravaganza, no Hotel Conrad, na Quinta do Lago, no Algarve. À semelhança do que havia acontecido no ano anterior, o hotel reservou três dias de novembro para dedicar à gastronomia e ao luxo.
No passado sábado, quem chegava à noite ao hotel percebia que algo se estava a passar. Na entrada, quem seguisse com os olhos a direção do som via a banda a tocar no telhado e, se avançasse mais, percebia as formas dos músicos através do vidro do teto. Mas, depois de passar as portas em direção ao lobby, ficava espantado por encontrar uma sala de jantar e uma cozinha onde normalmente estão mesas de receção e sofás.
O primeiro evento da noite, o Culinary Heaven (€245), tinha feito da entrada um céu onde os tons azuis dificultavam as fotografias aos que vivem para e das redes sociais. Heinz Beck, o chefe com três estrelas Michelin, restaurantes espalhados pelo mundo e um ali no hotel — o Gusto —, convidou outros chefes com base apenas em duas premissas: “a amizade e a qualidade”. Na primeira noite, o jantar para as quase 160 pessoas ficou a cargo do anfitrião e de Ricardo Costa, detentor de duas estrelas, do holandês Jacob Jan Boerma, com três estrelas, e de Maurizio Serva, com duas estrelas.
Este último, italiano, tem umas mãos que falam freneticamente e um tom calmo de quem pensa as palavras e as dispõe como ingredientes num prato. Na língua materna, por não perceber inglês, explica ao Expresso como a cozinha nacional está sempre presente nos seus pratos, ainda que nessa noite os raviólis de basílico com mozzarella e tomate liofilizado fossem servidos por Heinz Beck. Maurizio Serva trouxe os sabores de Itália de outra forma, aquela que aprendeu com os pais no restaurante que era deles e que hoje divide com o irmão. Desde os anos 60 mudou a decoração e a ementa e até ganhou duas estrelas Michelin. Mas manteve-se a sazonalidade dos ingredientes, como foi possível perceber na entrada de capuccino de abóbora com cardamomo fumado, ricota com sabor a café e sementes de abóbora. Acrescenta ainda que tudo o que faz tem um toque de inovação. Qualquer italiano reconheceria a alcachofra panada que serviu como prato principal. Porém, só um chefe com duas estrelas Michelin consegue que, quando se corta a alcachofra na vertical, uma gema de ovo expluda e banhe o topinambo e as gotas de menta.
A vista para a cozinha não deixou perceber que antes do jantar tinha sido ele a lavar e a preparar todas as alcachofras. Baixa o tom da voz para que os colaboradores não o ouçam quando explica que o fez não por não confiar neles mas porque quando o assunto é serio prefere assumir as rédeas. Mas a vista para uma cozinha montada na receção do hotel deixou perceber que a noite do jantar de gala foi preparada em conjunto. Apenas os pratos tinham assinaturas diferentes. No dia a seguir, Jacob Jan explica que assim é porque, embora esteja casado com a sua mulher, é com os chefes que vive. E Heinz Beck, o alemão que se apaixonou por uma napolitana e que sente sangue italiano a correr-lhe nas veias, garante que não estão ali para competir, mas apenas proporcionar uma boa experiência.
Durante o jantar de gala são muitos os espetáculos que funcionam como ‘limpa palato’ entre os pratos. Há números de dança, de trapézio, de violinistas e outras variedades que durante a tarde tinham sido ensaiadas até à exaustão. A noite vai avançando num crescendo que haveria de terminar como começou e como todas as outras terminaram — com os chefes em conjunto na cozinha a partilhar experiências, nessa altura já sem hóspedes. E com os sommeliers a experimentar vinhos e odores.
No dia a seguir, e ainda depois de uma experiência gastronómica, estava outra à espera, num dia em que as caminhadas foram feitas apenas para mudar de restaurante. Antes de chegar ao jardim, quem passasse pela receção não adivinhava que no dia anterior o mesmo espaço tinha sido cozinha e sala de jantar. Já no jardim, estava o brunch (€95), junto à piscina, debaixo de um sol que tinha tudo menos o calor e a cor do inverno. É graças à diretora-geral, Katharina Schlaipfer, que o plano A, o de almoçar debaixo do sol, se mantém. Ela explica que apenas repete o que o seu primeiro chefe lhe ensinara: se correr mal no dia altera-se, antes canaliza-se a esperança para o que se quer. A alemã está há pouco tempo no Algarve, mas depois de várias temporadas em Itália parece ter já entranhado o espírito dos dois países, fazendo até alguns dos locais transpirar. É ela própria que vai passeando de mesa em mesa, falando dos empregados e dos chefes e mencionando o nome dos convidados com a naturalidade de quem sabe a alcunha dos amigos de infância. Enquanto isso, os grelhadores, os peixes e os pratos frios ficaram a cargo de Joe Barza, um libanês que se sente como em casa em Portugal e que quer passar com a sua cozinha uma mensagem de paz, de Osvalde Silva, o chefe residente do Conrad, que recebe os colegas como uma família, “de coração aberto”, e que aproveita os dias para aprender, e de Franco Luise, um checo que vê na cozinha uma arte e nos pratos brancos uma tela.
Experiência completa
Se o sol da tarde e os vinhos indicados para cada prato pelos sommeliers Miguel Martins e António Coelho convidavam a ficar nas espreguiçadeiras e a mergulhar na piscina, da cozinha de Heinz Beck chegava a música do italiano Gianni Morandi ‘Fatti Mandare Dalla Mamma’. Como ninfas encantadas vestidas de jaleca de chefe, todos se dirigiram à cozinha do Gusto. A explicação do prato que Beck ia mandar fazer começa logo pela tradução da canção, que versa a história de uma criança que tem de ir buscar o leite. Simples, assim. Simples como um pequeno-almoço italiano onde o pão é molhado no cafe latte e que o chefe iria ensinar a preparar, “mas de forma diferente”, numa master class. Na realidade, o cafe latte de Heinz Beck no Gusto faz jus às suas três estrelas Michelin e incluiu a preparação de uma massa durante toda a noite e biscoitos feitos no sifão. O único instrumento necessário para um pequeno-almoço italiano é talvez o micro-ondas ali usado para fazer uma esponja fofa com migalhas de pão, ovos e açúcar. Tudo preparado num balcão de forma sublime, rápida e com a elegância de quem deve a vida aos ingredientes com que trabalha. Heinz, o único chefe com três estrelas a assinar uma carta em Portugal, garante ao Expresso nada ter a ver com o fenómeno que se tem repetido pelo país. E acrescenta que os chefes portugueses têm qualidade e criatividade suficientes para poderem ficar com os méritos sozinhos.
No mesmo balcão onde o cafe latte foi preparado, à noite sucedem-se os pratos e as filas de empregados a transportá-los como uma dança ensaiada ao pormenor. É naquela sala intimista, ao som de um piano de um quarto de cauda, que se vive a verdadeira experiência do Jantar Michelin (€245). Heinz Beck, Jacob Jan Boerma e Juan Amador servem, a menos pessoas do que nas anteriores refeições, um espetáculo de nove pratos. Com três estrelas Michelin, Amador juntou num dos seus pratos carabineiros com salsa, lardo e caracóis de Viena. Os carabineiros cobertos por um aparentemente saboroso látex verde e uma espuma de caracóis são o resultado da pressão que sente. Um pressão, explica, que chega com a primeira estrela Michelin, porque a partir daí a ambição faz com que se corra atrás das outras, e isso torna-se stressante.
Contudo, o stresse ou a ansiedade não passam para quem experimenta os pratos, degustando cada garfada enquanto tenta descobrir os ingredientes à medida que os sabores explodem no palato. Não há stresse que assalte quem está a viver a experiência sentado. Mesmo quando os hóspedes vegetarianos se acusam e os chefes têm de mudar a ementa para alguns dos convivas. Entre pratos, há uma cantora lírica que sofre de amor e passeia a sua trágica história pela sala.
O dia seguinte, segunda-feira, torna-se pouco trágico e mais fácil de suportar com o plano de um almoço (€95) na suíte Roof Garden, onde os chefes do Hilton, Osvalde Silva, Christoph Jefferson, Franco Luise, Shota Goderdzishvili, Idan Hadad e o chefe pasteleiro Roberto Horta, preparam os pratos nas estações com vista para a piscina. Apenas com uma pausa durante a tarde para a apresentação do vinho Bairrada DOC Just for Friends e do espumante Sommelier, dois exclusivos num elogio ao luxo e aos brindes. À noite, o chefe Heinz Beck volta a receber na sua cozinha do Gusto (€245), desta vez acompanhado por Sidney Schutte, com duas estrelas Michelin, e Chris Galvin & Joo Won, com uma estrela.
Nos pós-jantar, ou quando assim o desejaram, os heróis foram os cocktails feitos pelo patriótico Nelson de Matos. O bartender residente passou nove meses a rever “Os Lusíadas” e a estudar misturas que estão reunidas numa carta de dez bebidas com o nome de cada canto. O mixologista tem orgulho na perpetuação da história dos heróis, no misturar da qualidade das bebidas e dos ingredientes portugueses. No terceiro canto há caldo da cataplana liofilizado, e o sabor é cítrico. No sétimo há cardamomo e malagueta e um gole refresca. É esta a surpresa que faz com que os turistas queiram saber mais acerca dos ingredientes e de quem foi
Camões.
Os três dias dedicados à extravagância da surpresa na alimentação e da qualidade dos ingredientes terminam com a promessa de que para o ano há mais. E com a lição de que o luxo é um conceito que cada um cria para si.