Sociedade

Leónidas e os 300 espartanos que afinal eram mais

Um olhar sobre a história militar do mundo antigo na Faculdade de Letras de Lisboa que começou com a desmontagem do mito da batalha das Termópilas

Leónidas, o rei de Esparta, tal como é representado no filme “300”, de Zack Snyder (2006)
d.r.

Aprendi no liceu que o sacrifício dos 300 guerreiros espartanos no desfiladeiro das Termópilas (480 a.C.) não foi em vão. Só foram vencido à traição mas atrasaram a segunda invasão persa, dando tempo às forças gregas para se prepararem. Ao contra-atacarem, por mar em Salamina e por terra em Plateias, os gregos repeliram as hordas orientais e garantiram a permanência das ideias e valores em que viria a assentar a futura civilização ocidental.

Terá sido mesmo assim? Foi esta a pergunta feita na primeira sessão do curso livre Grandes Comandantes do Mundo Antigo que decorre até 22 de novembro todas as quartas-feiras na Faculdade de Letras de Lisboa por iniciativa do Centro de História da Universidade de Lisboa.

O conferencista da sessão de abertura referiu que uma coisa são os mitos e outra a análise histórica dos acontecimentos. José Varandas, docente da Faculdade de Letras ligado à organização de anteriores cursos livres sobre história militar, lembrou que o mito moderno dos 300 espartanos é construído a partir dos escritos de lorde Byron quando, em 1824, este visita a Grécia, em revolta contra o império otomano.

Para a Inglaterra vitoriana o enfraquecimento do rival otomano era crítico e por isso historiadores da época como Edward Creasy exaltam o Leão de Esparta como defensor dos primórdios da civilização ocidental. Ora, como lembrou José Varandas, “Leónidas é um rei tribal que não tem sequer a ideia de uma Grécia unificada, quando mais da Europa”.

E quanto ao combate propriamente dito? Em primeiro lugar há indícios apontando para que o efetivo dos defensores não se limitasse a 300 guerreiros de elite mas incluísse mais alguns milhares de tropas auxiliares, nomeadamente ilotas. A verdade é que, defendendo a entrada de um vale muito fechado, eram mais que suficientes para repelir ataques frontais de uma forma numericamente muito superior.

Nus na neve?

Como combatiam os espartanos? Semi-nus na neve como nos mostra a banda desenhada de Frank Miller “300” e o filme homónimo de Zack Snyder (2006)? Seguramente que não, visto que a luta se deu em Agosto debaixo de temperaturas infernais, ou não se chamasse o local literalmente as Portas de Fogo (Termópilas). Os restantes adereços são mais ou menos credíveis, caso dos grandes escudos redondos com o lambda desenhado, os capacetes emplumados e as lanças longas. Faltam no entanto as couraças peitorais e as grevas protegendo as canelas. Se a formação defensiva em muralha de escudos é credível, já o grito de guerra copiado do dos fuzileiros norte-americanos é uma liberdade poética de Holywood…

Os adereços são mais ou menos credíveis, caso dos grandes escudos redondos com o lambda desenhado, os capacetes emplumados e as lanças longas
d.r.

Se eram uma força militar de elite e tinham o terreno a seu favor, como puderam ser vencidos? Pela traição, claro, quando o infame Efialdes (representado no filme com os traços deformados da perfídia) ensina ao imperador Xerxes o caminho das pedras que permite tornear a formação espartana e cercar os defensores.

Mas terá sido assim? Para José Varandas, “um grande exército, como o persa, tinha também que ter grandes ideias”. A forma de vencer a muralha de escudos não foi a traição mas o recurso em larga escala aos arcos e flechas. O escudo redondo grego (hoplon) era uma arma defensiva formidável, chegando a pesar 7 kg. Mas era-o sobretudo no combate corpo a corpo ou nas cargas de infantaria em linhas sucessivas. Ao contrário do escudo retangular romano (arredondado nos bordos), o hoplon protegia mal os lados do combatente e não era adequado a formações defensivas contra projéteis como o testudo (tartaruga) romano em que parte dos escudos eram postos na horizontal sobre a cabeça dos soldados.

É esta vulnerabilidade que os arqueiros persas vão sabiamente explorar. O tiro curvo de saturação (três a oito setas/minuto por atirador) sobre o “ouriço” defensivo espartano causa um número crescente de mortos e feridos que é preciso trazer para a retaguarda e vai tornando menos densa a muralha de escudos até o ataque de infantaria ser possível.
Bem tinha avisado o imperador Xerxes de que as suas flechas “iriam cobrir o sol”. Para a história ficou o desafio de Leónidas: “então combateremos à sombra…”

Com a muralha de escudos rompida, os espartanos vão combater dois a dois (costas com costas) como tinham aprendido no equivalente à nossa recruta mas, mesmo tirando partido da arte marcial que praticavam desde crianças (a dança pírrica), a aniquilação era uma questão de tempo.

Irmãos de armas

Este combate em pares, designados como amantes, já levantou algumas questões divertidas sobre a pretensa homossexualidade dos guerreiros, tanto mais que um era sempre o mestre, ou o mais antigo e o outro o aprendiz, mas de facto, como vincou José Varandas, “tratava-se de irmãos de armas e não de namorados…”

Da derrota nas Termópilas os estrategas gregos souberam tirar as devidas lições. Para conferir maior proteção à infantaria o diâmetro dos escudos aumentou. E para reduzir ao máximo o tempo de exposição às nuvens de flechas inimigas foi aperfeiçoada a capacidade de carregar a toda a velocidade. Só atletas dignos dos Jogos Olímpicos conseguiam manter a formação escudo com escudo, transportar 30 kg de equipamento individual e carregar em passo de corrida enquanto gritavam que nem possessos o nome do deus grego dos infernos. A arte do hoplitrodomos (corrida com escudo e lança) seria levada ao seu ponto mais alto na carga da infantaria grega que decidiu a batalha de Plateias (Agosto de 479 a.C.) e o destino da segunda e última invasão persa.

Escudos desativados

Que mais nos ensina sobre Esparta a análise dos acontecimentos? Que a composição das forças espartanas incluía um número grande de guerreiros não pertencentes à elite, como os ilotas e os neodomodeis (assimilados a carregadores). Aliás Tucídides dá-nos uma ajuda ao referir a propósito da batalha de Plateias que a cidade-estado mandara sete mil combatentes, “dos quais dois mil eram espartanos”.

Os ilotas eram formados por jovens estrangeiros raptados ou aprisionados durante as operações militares e treinados como força de combate. O grau de confiança na sua lealdade devia ser relativo, pois enquanto há imagens dos atenienses a pendurarem na parede os seus escudos em tempo de paz, os dos espartanos eram guardados sem a pega interior (porpax), o que inviabilizava o seu uso caso caíssem em mãos erradas (leia-se de ilotas revoltados).

A grande ironia de tudo isto é que Esparta, o suposto modelo da cidade guerreira, perdeu a maior parte das batalhas que travou, só ganhou uma vez nos Jogos Olímpicos, nunca teve grande marinha nem colónias, nada nos deixou em termos de arquitetura, poesia ou filosofia mas acabou por sair vencedora dos 30 anos da Guerra do Peloponeso contra Atenas.