Esqueçam os mitos e os estereótipos, o homem de Vitrúvio e a Kate Moss, a Bundchen e a estátua de David, as musas de Botticelli e o CR7, a Angelina e o Brad, a Beckham e o Beckham, a Gioconda e o James Dean, a Vénus e o Paul Newman, o Calendário Pirelli e o Photoshop, a Afrodite e o Mister Universo, o espelho da Rainha Má e o “Retrato de Dorian Gray”. Esqueçam a beleza, como nos dizem que ela é. O mundo é imperfeito e desigual. E a beleza é muito mais. Uma coisa é ser feio. Outra, é não ser bonito.
Em 1969, ano em que o homem pisou a Lua, dois fotógrafos de moda ingleses, exauridos da moda como era, à bolina nas emanações filosóficas que sopravam de Woodstock, decidiram embarcar nas águas estagnadas de uma contracorrente que habitava na imensa clandestinidade. Cansaram-se, pura e simplesmente, de produzir e retratar obras-primas da artificialidade. Aqueles modelos esqueléticos, saídos de uma linha de produção ou de uma qualquer bíblia do glamour, sem uma bolsa de gordura, uma ruga, um desvio estético, um desses defeitos de fabrico que caracterizam os vulgos mortais. A moda, como esses fotógrafos de moda a entendiam, tinha-se transformado numa máquina global, que comprimia em vez de libertar.
Os fotógrafos, que sempre fizeram questão de se resguardar no anonimato, decidiram lançar um ataque público ao coração do mercado. Decidiram fazer uma convocatória geral, na secção dos classificados da sociedade. Em novembro de 1969, colocaram um anúncio nos jornais pedindo pessoas com “aparência única”, invulgarmente comuns, invulgarmente feias, pessoas-modelo de toda a gente, que estivessem dispostas a ser apenas o que eram. Delas, queriam a individualidade.
A resposta foi avassaladora. Gente de todos os quadrantes, tamanhos e feitios correspondeu à convocatória, exibindo as suas imperfeições, como relíquias armazenadas, a sacudir o pó da realidade. A afluência foi de tal forma inquestionável e a escolha de tal forma múltipla que os fotógrafos decidiram antecipar para a luz do dia um projeto ainda em fase de gestação. Assim nasceu oficialmente a Ugly Models, a primeira agência do mundo para modelos feios. Foi a primeira e a última vez que a agência colocou um anúncio.
UM MODELO DE MERCADO
Em 1969, Marc French ainda estava bastante ocupado em crescer. A sua carreira artístico-profissional só começaria nos anos 80, quando já estava suficientemente crescido para não saber o que queria. Oficialmente, era bailarino e modelo. Como bailarino, não reza a sua história. Como modelo, enquadrava-se perfeitamente nas convenções da beleza vigente. Nenhuma das atividades, porém, lhe rendeu grandes luxos. Marc flutuava por Londres, como a chuva de outono. Era jovem, mas não assim tanto que não percebesse que o mundo da moda podia idolatrá-lo num dia e odiá-lo no outro, sendo que o contrário também era verdadeiro.
Hesitava. Ser modelo? Modelo de quê? Modelo de quem? Representar o papel do homem ideal? Ganhar dinheiro a fingir que a beleza era a verdadeira fonte da felicidade? Ser estereótipo de ocasião? Era uma hipótese, sim senhor. Mas, sinceramente, não lhe pagavam o suficiente para isso.
No final da década de 80, o seu conceito do que era a moda e do que a moda devia ser já demonstrava os sintomas de um divórcio amigável. Surgiu, porém, um convite capaz de reconciliar esses mundos. A Ugly Models, entretanto, tinha criado uma subagência, chamada Rage, que se destinava a a representar uma casta de modelos com aparência mais convencional, menos radical, menos excêntrica, mais próxima dos parâmetros com os quais ela própria rompera, mas distante q.b. para evitar equívocos. Com 22 anos, Marc French assinou pela Rage Models, conhecendo por essa via o infinito universo Ugly.
Todos os modelos, mesmo os que supostamente alcançam o pináculo da eternidade, têm prazo de validade. E, lentamente, a vida de Marc French passou de modelo a caçador de modelos. Em 1993, aceitou o convite para dirigir a Rage Models. Três anos depois, tornou-se proprietário único da Ugly Models, comprando a agência aos seus fundadores.
Marc é uma daquelas pessoas com uma energia inesgotável. Percebeu que o mercado da fealdade mantinha o seu potencial intacto. E a agência, prestes a consolidar-se como marca, preparou-se para o segundo fôlego. Na década de 90, o mercado do invulgar, para quem o conhecia por dentro, dava crescentes sinais de procura. E ele achou que era o momento exato para diversificar a oferta, em quantidade e em “qualidade”, nas suas mais estranhas estirpes. Mas, recorda Marc French, “nem tudo foi um mar de rosas. Estar onde estamos exigiu muito trabalho”. E não se pense que, ao contrário da beleza, a fealdade, só porque é feia, é feia e pronto. Não é. “Os seus conceitos também alteram ao longo do tempo. Os conceitos sobre o que é belo e o que não é, são muito voláteis.”
Nem mesmo os gigantes da indústria da moda, estão sempre interessados na perfeição. Percebendo isto, Marc capturou o mercado que faltava capturar. Descomplexou definitivamente a palavra “feio”, mas foi adotando nova terminologia para os seus modelos mais bizarros, chamando-lhes “character models”. A Ugly Models não representa apenas os mais feios entre os mais feios, representa “personagens”. E, uma vez que não era possível derrotar a indústria da beleza, encontrou forma de se juntar a ela. Do cinema às revistas de moda, da publicidade à música, já forneceu matéria-prima para as áreas mais transversais, assim como para as grandes marcas do universo da moda. A Ugly já cedeu modelos para campanhas da Calvin Klein, da Diesel, da Levi’s Strauss, da Renault, da Marks & Spencer. Já fizeram capa e inundaram as páginas da “Vogue”, da “Elle”, da “Cosmopolitan”, da “Vanity Fair”. Já entraram em blockbusters, como a saga de “Harry Potter”, os “Piratas das Caraíbas” ou em vários filmes de James Bond. Já fizeram aparições em vídeos de Katy Perry, de Miley Cyrus, nos velhinhos Godley & Creme, ou em verdadeiros clássicos dos anos 80, como os Pogues. Já trabalharam com os mais consagrados fotógrafos de moda, como Mario Testino e David Bailey. A agência tem igualmente uma parceria com a Guinness World Records. Representa, entre vários outros, o homem mais alto do mundo, a mulher com mais piercings do planeta, o homem mais tatuado do mundo.
A Ugly, à sua maneira, gerou os seus próprios “supermodelos”, capitalizando as imperfeições que a vida lhes deu, invertendo-se o triste fado de ser feio e todos os preconceitos inerentes, que muitos tiveram de enfrentar por ser diferente, no sentido mais perverso da palavra. “Não é apenas uma agência, é um agente de mudança de mentalidades. O mais importante, em qualquer modelo, é que se sinta confortável na sua pele”, diz Marc, para desafiar o cliché.
A Ugly Models compartimentou a fealdade em sete departamentos específicos, para homens ou mulheres: Bodies (corpos); Twins (gémeos); Bikers (motoqueiros); Wee Folks (anões); Giants (gigantes); Thugs (rufias). E X-Files, que dispensa tradução. O lema da agência permanece incólume: “Ninguém é demasiado abstrato para os nossos books. Somos feios.”
TODOS DIFERENTES, TODOS DESIGUAIS
A Ugly, que se prepara para abrir uma filial em Nova Iorque, soube expandir sem sair do lugar e sem os seus caçadores de talento terem de gastar solas nas ruas de Londres. Atualmente, a agência representa perto de dois mil modelos de todo o mundo, sendo que a substância continua a ser em maioria britânica. “Os nossos modelos são como os nossos vizinhos”, ironiza Marc. “Nenhuma produção de moda é mais arrojada que a realidade”, acrescenta. Nenhum cenário ou argumento de ficção, por mais incrível que pareça, chega aos calcanhares do quotidiano. Foi lá que despontaram as estrelas maiores do firmamento do feio. É lá que a Ugly se alimenta, colecionando os mais estranhos modelos, nas mais estranhas formas de vida.
Antonio Francis, divorciado, pai de quatro filhos, era conhecido lá em casa por um talento invulgar, que só em ocasiões de certa forma especiais ele ousava demonstrar. Nem nos seus sonhos mais prodigiosos ele um dia pensou que os seus olhos saltariam para a órbita do estrelato. Antonio é mais conhecido em Inglaterra por “Pop-Eye”, mas os espinafres não têm qualquer peso nos seus atuais 147 quilos. O peso, aliás, é só uma espécie de enquadramento. O epíteto vem de uma capacidade rara num ser humano. Francis é capaz de exercitar ao extremo os músculos da órbita facial, ao ponto de quase fazer saltar os olhos.
A sua ex-mulher não achava piada. Achava até uma aberração. Não via, como a Ugly viu, o seu potencial X-Files. Francis foi recrutado para agência. E começou a dar nas “vistas”. Participou num filme de ficção científica, depois surgiram uns anúncios. E a sua carreira de modelo estava lançada. Até a sua ex mudou de opinião. Afinal, aquilo era um talento. E o lugar para aferir esse talento, pensou Antonio Francis, era no “Britain’s Got Talent”, versão 2011. Foi ali, em horário nobre, que Francis foi batizado de “Pop-Eye”. A sua atuação chocou toda a gente. Ninguém ficou indiferente. E a vida de Francis nunca mais foi a mesma. Descobriu que pode sustentar a família sendo o “Pop-Eye” da nação. Passou a ser um ator que faz de si mesmo, em programas de TV, em documentários, em séries televisivas, em publicidade. Mas não esquece que a sua génese é Ugly. “A Ugly Models não é um freak-show. Os nossos modelos são muitíssimo variados. Vão desde as pessoas que se cruzam connosco no autocarro aos seres mais invulgares do planeta”, explica Marc French.
Um desses seres, andou quase 70 anos disfarçado de pessoa vulgar. Durante uma vida, foi o homem cumpridor, do trabalho para casa, de casa para o trabalho, sempre dentro de um fato, sempre com a pasta na mão. Até que chegou a reforma. E, com esta, um enorme vazio. Aos 75 anos, tomou uma decisão: colocar um piercing. E recomeçar a viver, obedecendo apenas à sua vontade. Nasceu Prince Albert, que tem hoje 78 anos, um penteado moicano, o corpo coberto de tatuagens e 241 piercings, número em constante atualização.
O Prince Albert não é exatamente uma evocação ambulante do pretérito duque de Clarence e Avondale, nem sequer um sucedâneo britânico da realeza monegasca. Nos dias que correm, um Prince Albert é o piercing dos piercings, pelo seu grau de dificuldade. É colocado onde nenhuma mulher o pode colocar. E, por ter sido o primeiro, o gerente bancário na reforma quis intitular-se assim. E foi assim que se intitulou quando se dirigiu à Edgware Road, para um casting na Ugly Models. Prince Albert não procura exatamente o estrelato, embora também não o recuse. Está mais interessado em expressar-se. A sua mensagem é clara. Por detrás da cara tatuada, coberta por uma máscara de piercings, encontra-se um homem que descobriu a forma de ser feliz. E ainda lhe pagam para isso.
O REI DOS FEIOS
Derrick Keens nasceu no distrito de Peckham, a sul de Londres, numa região outrora rural, antes de ser absorvida pelos tentáculos suburbanos da grande cidade, antes do declínio, antes da regeneração. Incrível, como a vida de um lugar pode descrever tão bem a sua. Fazendo recurso do inevitável humor britânico, define assim as expectativas que lhe assistiam: “Estava convencido que tinha nascido para ser ninguém.” Não acertou por uma nesga.
Nasceu com dois quilos e pouco, sem mais a registar. Oficialmente, foi uma das raríssimas ocasiões em que Del esteve dentro dos parâmetros. Sempre foi muito magro. Na escola viam nele um fio elétrico com uma mochila às costas. A escola foi o seu pior pesadelo. Mas não foi o único. Del não precisou de crescer muito para perceber que não se enquadrava na beleza dos outros. Talvez porque todos os santos dias, em múltiplas ocasiões, lhe diziam o quanto ele era feio. Até que a coisa se transformou num facto. De uma estranha forma, habituou-se ao coro dos bullies, às frases que disparavam os atiradores furtivos da crueldade, sempre que passava. Habituou-se às gargalhadas, quando o expunham ao ridículo, quando o exibiam como se fosse uma aberração. Aprendeu a ignorar uma certa tipologia de olhar. Chegou até a pensar que a sua fealdade era uma maldição. Ou, na melhor das hipóteses, uma doença passageira.
As ruas onde brincava deixaram de ser uma brincadeira. Ficar em casa passou a ser uma missão. Aprendeu a rezar, rezando para não ir à escola. Como se já não bastasse ser adolescente, tinha logo de ser um adolescente feio, com o esqueleto à flor da pele, os dentes como as ruínas de Pompeia, o corpo desconjuntado, a cara assimétrica, o cabelo espesso, sem ter para onde ir, prelúdios de barbicha, sem ter onde ficar, e uma avalanche indeterminada de satélites, carregados de coisas feias, que se despenharam avulso no seu corpo. E uns olhos imensamente tristes, por causa do enumerado. Pobre Derrick. Tão jovem e já com a vida tão a desfavor. Não apenas por não ser bonito, mas por ser tão feio.
Desistiu da escola assim que pôde. E começou a trabalhar. A sua família não tinha dinheiro para o essencial, quanto mais para corrigir as suas particularidades estéticas. Tudo nele degenerou, como a progressão galopante de uma doença. A única limitação que tinha estava no seu interior. O problema, esse sim, estava demasiado exposto. Durante anos, não conseguiu resolver essa equação. Era por isso que julgava que não ia a lado nenhum.
Que era exatamente para onde ele ia, quando um fotógrafo o abordou na rua, no último fôlego da década de 60. Derrick pensou que era um bullie da sua escola, com nostalgia da infância. “Disse-me que eu tinha um look interessante e que gostava de me fotografar.” Foi necessária uma palestra para convencer mister Keens que as intenções eram sérias. Como ia ser pago, aceitou. “Depois da sessão fotográfica, nunca mais me disseram nada. Julguei que me tinham pago umas libras para gozar comigo. O que era uma evolução.”
Meses depois, a feliz coincidência. Derrick tinha arranjado um emprego a distribuir correio. E, numa carta, viu a morada da Ugly Models, onde ele tinha estado. “Quando lá cheguei, perguntaram-me se vinha fazer um casting. Eu disse que vinha entregar uma carta. O casting já estava feito.” Derrick já tinha ouvido as frases mais obtusas que se possa imaginar. Nesse dia, disseram-lhe a mais estranha de todas: “Tinha o que era necessário para ser modelo.”
Derrick adotou o Del para seu nome artístico. Del Keens, quando as coisas ficavam demasiado sérias. Alguns dias depois, entrou pela porta grande, pois ia participar num teledisco dos Pogues, então a caminho do estrelato. Nunca mais parou. Quando deu por ele, tinha uma carreira de modelo. Quando deu por ele, estava na Côte d’Azur, rodeado de luzes, de câmaras e ação, “a filmar um anúncio da Renault, visto em todo o mundo”. Quando deu por ele, tinha uma cadeira com o seu nome, as mordomias da praxe e “até namoradas”. Quando deu por ele, havia fotos suas de corpo inteiro em anúncios da Diesel e da Calvin Klein. Quando deu por ele, estava a receber uma chamada para fazer uma produção de moda com a Heidi Klum. Quando deu por ele, também era um desses supermodelos. E a vida tornou-se tão estranha que ele, em vez de tratar do seu aspeto, tratava de o manter.
“Quando dei por mim, estava em Berlim.” Porquê? “Fui atrás de uma ex-namorada.” A demanda não teve sucesso. Mas Del decidiu ficar. E mudar de rumo, mantendo-se no mesmo. O supermodelo da Ugly ainda mantém ligação umbilical à agência. Depois de ter feito alguns trabalhos em Berlim, entre os quais um anúncio para a BMW, resolveu caminhar por conta própria. Nasceu a segunda agência de modelos feios do mundo. Foi criada à imagem de Del Keens. Chama-se Misfists Models. E anda à procura de gente feia.