Sociedade

Mostrar ou não mostrar o vídeo? Juristas pronunciam-se

A propósito das imagens que se disse mostrar uma estudante a ser “abusada” (quando o único abuso poderá ter sido divulgar as imagens), o Expresso ouviu juristas de referência nas áreas em causa

JOSÉ COELHO / LUSA

Era uma vez uma princesa célebre que a imprensa tablóide perseguia constantemente. Fotografavam-na a andar na rua, a fazer compras, em todo o tipo de situações sem relevância pública nenhuma. Cansada, ela meteu um processo para a deixarem em paz. Nos tribunais do seu país não ganhou, mas no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem sim. E esse final feliz, que aconteceu mesmo, tornou-se um caso paradigmático na jurisprudência internacional do direito à imagem.

A um nível mais banal, e sem princesas, não têm faltado oportunidades para explorar os limites do mesmo direito em Portugal. Um jornal publica fotografias de uma conhecida apresentadora de televisão a namorar na praia. Outro, imagens interiores da casa de um futebolista. Que interesse público (por oposição a interesse do público) justifica essas publicações? Também há retratos de jogadores que são usados em cromos sem autorização, e pessoas comuns que veêm imagens suas - obtidas por ocasião de algum evento singular, por exemplo um acidente de viação - recicladas posteriormente em notícias que nada têm a ver com elas.

Estas são algumas situações relativamente brandas e comuns de ofensa ao direito à imagem. Em princípio, não haverá especial dificuldade em resolvê-las, seja através de acordo ou de iniciativa unilateral para retirar o material ofensivo. Bem mais sérios são os casos que fizeram manchete a semana passada em Portugal. No mais grave de todos, um vídeo de uma jovem envolvida numa situação erótica foi colocado na internet e a seguir publicado por um jornal. Filmado dentro de um autocarro cheio de universitários, o vídeo gerou um aceso debate sobre as fronteiras legais e morais da liberdade de imprensa.

Para o advogado Ricardo Correia Afonso, que tem experiência de casos de imprensa, houve incumprimento das normas deontológicas por parte do jornal que publicou o vídeo. "O Estatuto proíbe humilhar as pessoas", diz. "Além disso, a informação não foi rigorosa. Não houve violação nenhuma. Observando as imagens, é patente que a rapariga está a agarrar o pescoço e a cabeça do rapaz. Aquilo não tem interesse público. Não vejo como pode ter". A vítima, explica, "fica sujeita a ser vista como uma rapariga fácil. Pode reagir do ponto de vista civil e penal. E o rapaz também".

Leis de antes da Internet

Manuel Lopes Rocha, atualmente no escritório de advogados PLMJ, será talvez o jurista português que trabalha na área do direito de imagem há mais tempo. Quando lhe pedimos um comentário, começa por lembrar o princípio básico: "O direito à própria imagem é um direito fundamental. A internet não está fora da lei". O ano passado, triunfou num processo que esteve cerca de dez anos em tribunal e já é encarado como um marco nesta área. Imagens de um mulher envolvidas em atos de natureza íntima foram parar à Internet. Ela processou o antigo namorado, e, embora não se tenha provado que fora ele a pôr a publicar as imagens, o Supremo Tribunal entendeu que, estando estas no seu computador, ele tinha o dever de as guardar. E condenou-o a pagar uma indemnização de dez mil euros.

Não terá sido um processo cível apenas por acaso. "Os juízes do cível têm mais sensibilidade", explica Rocha. "O direito de imagem está protegido no Código Civil. E as penas criminais são baixas para estes casos". Nenhum das penas possíveis ultrapassa um ano, o que ele acha pouco. "As leis penais relativas à internet têm de ser revistas. Tem de haver um agravamento das molduras penais, e também mais meios para fazer as imagens desaparecer rapidamente". A inadaptação da lei à internet estende-se, aliás, a outras áreas. "A utilização e divulgação de segredos comerciais e industriais é punida com pena de prisão até um ano. É um absurdo. A divulgação de segredos de uma empresa pode destruí-la para sempre. Às vezes é mais grave do que o próprio roubo de software".

Ele nota que a lei penal aplicável é já bastante antiga (vem de um tempo em que não havia internet) e as normas do Código Civil sobre direito de imagem, "que aliás eram bastante avançadas para a época", datam de 1966. Em contrapartida, em matéria de direito de autor, Portugal é dos países da Europa que mais rapidamente tira conteúdos ilícitos da Internet, graças a um acordo que a APRITEL e as entidades de gestão coletiva fizeram com a Inspeção Geral das Atividades Económicas.

"O tribunal de propriedade intelectual já deu uma ordem a entidades intermediárias da internet para retirarem imagens da SportTV. E os grandes intermediários da internet quase sempre cumprem. Hoje em dia os tribunais têm meios, nomeadamente para pressionar. Na área da criminalidade informática, por exemplo, existe um acordo entre a unidade de cibercrime da Procuradoria-Geral da República e a Microsoft, a Google e o Facebook".

Em suma, não será por questões de inexigibilidade que se deixará de atuar para retirar materiais ofensivos da internet; hoje isso já acontece em meses, e "há que transformar os meses em dias". Nem a dificuldade estará forçosamente em convencer os magistrados. "Os tribunais têm sido pioneiros neste assuntos", diz Rocha. "Muitas vezes, antes de haver leis específicas".

Em casos como o da estudante do Porto, ele lembra que "hoje não se pode mudar de vida". Isto é, o vídeo agora publicado pode ressurgir um dia mais tarde.

"Nunca desaparecem e desaparecem muito depressa"

Um advogado que lida regularmente com assuntos de imprensa e liberdade de expressão é Francisco Teixeira da Mota. Disse ao Expresso que tem tido alguns, não muitos, casos de direito à imagem, "envolvendo a imprensa, não a internet. Publicação de fotografias não autorizadas. Utilização de fotografias que estavam no arquivo de um jornal e foram usadas para ilustrar outro tipo de notícias que não tinham diretamente a ver com a pessoa em causa. Esta considera, e com razão, que a autorização foi dada para um certo fim e não para ilustrar outras notícias".

Os casos resolveram-se e foram arquivados, conclui. "Não se tratava de figuras públicas. Eram pessoas que tinham sido entrevistadas a propósito de determinados assuntos. Com figuras públicas, o seu direito não está protegido da mesma forma. Se eu entrevistar um primeiro-ministro agora, daqui a seis meses posso voltar a usar as fotografias a propósito de outro assunto qualquer. Já se for um cidadão comum que eu entrevistei porque teve um acidente aparatoso na autoestrada, não posso utilizar a mesma fotografia daqui a uns tempos para ilustrar outro desastre ou seja o que for".

Feita a distinção, passamos à estudante do Porto. "O direito aqui é simples", explica. "Na legislação portuguesa, temos duas coisas: direito à imagem e direito à vida privada. As imagens do video violam ambos esses direitos. Por um lado, a gravação e a sua divulgação são crimes. Por outro lado, a devassa da vida privada também é crime. A gravação podia não devassar a vida privada, mas isso acontece".

Em ambos os casos, como vimos, a moldura penal vai até um ano de cadeia. Ao contrário de Lopes Rocha, ele não acha que seja pouco. "Se a pessoa não for um criminoso habitual, em princípio há uma pena suspensa. Mais importante do que a moldura penal, é a indemnização pelos danos que foram efetivamente causados. Sendo certo que às vezes há danos que são irreparáveis. Em Itália, por exemplo, houve uma senhora que se suicidou. Apesar de ela ter mudado de terra. Veja-se os danos que lhe foram causados".

Em muitos casos, uma vez que as coisas na internet nunca desaparecem completamente, os danos em questão não serão futuros? "Bom, nunca desaparecem e desaparecem muito depressa", diz Teixeira da Mota. "A verdade é que para a semana já ninguém fala disto. Estudos mostram que não existe esse efeito tão ampliado da internet. Há uma grande divulgação, mas a catadupa de informação é tal que as coisas se perdem a grande velocidade. É claro que as pessoas podem pesquisar e descobrir. Mas as imagens também podem ser retiradas. O Google retira pelo menos os links para elas".

Em termos gerais, a posição de Teixeira a Mota enfatiza sobretudo a liberdade de imprensa: a comunicação social deve divulgar o que sabe, "tendo em atenção os direitos de outros". Sobre o video do Porto, também ele diz claramente que não houve violação. "É a javardice própria dos adolescentes que existe por todo o mundo nesse tipo de festas. Viagens de fim de curso, a Espanha. Na América, o spring break. Uma mistura um pouco explosiva de álcool e sexo. Agora sabe-se por causa das imagens".

Preto e branco? “Não, de maneira nenhuma”

Sendo a divulgação não autorizada do vídeo um crime semi público, compete à vítima, ou alegada vítima, fazer a respetiva queixa (nos crimes particulares, exige-se queixa e acusação da vítima; nos públicos, nem uma coisa nem outra). Ou então a interposição de uma ação cível. "Agora outro aspecto", diz Teixeira da Mota. "As pessoas são adultas, ou supõe-se que são. Têm o dever de saber o que hão-de fazer. Quando uma pessoa tem relações sexuais consentidas no meio de um autocarro, ainda podemos considerar que é vida privada e não se deve divulgar. Mas é uma vida privada um bocadinho, como dizer... Se uma pessoa for ter relações pessoais para o meio de um centro comercial, é vida privada?". Ele reconhece que não é a mesma situação, mas diz que "estava justamente a esticar, para ver onde acaba a vida privada".

Recordando que o diário agora criticado divulgou o vídeo com as caras tapadas, recusa dizer se a publicação devia ou não ter ocorrido. "A ERC vai-se pronunciar. O meu princípio geral é que, quando a comunicação social tem acesso à informação, deve avaliar se há um interesse público. A avaliação que fizeram foi que havia. Não vou ser juiz dessa avaliação".

Não é preto no branco, então? "Não, de maneira nenhuma. Veja o debate que isto provocou. Não concordo com o conselho de deontologia do sindicato de Jornalistas, que disse que aquilo era a total negação do jornalismo. Para mim é um bocado repelente, mas será bom ficarmos a saber. Mostrar as praxes, a javardice. As imagens também contam. Desde que se salvaguarde a identidade das pessoas".

O problema é que, mesmo sem mostrar as caras, pode haver gente próxima que reconheça os envolvidos. Amigos, ou mesmo os pais. Teixeira da Mota diz que pode acontecer, mas acha que as pessoas têm de se adaptar aos tempos que vivem. "Abdicam da privacidade sem pensar. É como no Facebook".

Em matéria de liberdade de imprensa, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem toma com frequência decisões que envergonham o Estado e os tribunais portugueses. Teixeira da Mota, comentador habitual dessas decisões, admite que estritamente em matéria de direito à imagem o TEDH é muito menos liberal. Ainda assim, mantém a sua posição. "A tradição em Portugal vai no sentido do receio, de que o respeitinho é muito bonito. Eu entendo não me competir a mim andar a trabalhar pela moderação".

"A minha preocupação é alargar o campo", resume. "Para o travar já existe muita gente".