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Cinema: a jornada de Souleymane na nova vaga de escravos do capitalismo digital

Um estafeta guineense em Paris pedala incansavelmente no primeiro filme do ano que faz a diferença: “A História de Souleymane”. Falámos com o realizador, Boris Lojkine. “Preciso de aplicar um modelo de descentramento ao meu trabalho”, disse-nos. “Não quero fazer um ‘filme de brancos’: desculpe-me a expressão, mas não sei colocá-la de outra maneira”

Abou Sangare, que desempenha o papel de Souleymane, é guineense. De momento, tem apenas uma autorização de residência em França

África está há muito presente no trabalho do francês Boris Lojkine, de 55 anos, que chegou à ficção a partir do documentário. No filme que o lançou, “Hope”, estreado na Semana da Crítica de Cannes em 2014, um migrante camaronês atravessava o deserto do Saara e cruzava-se com uma nigeriana que, para se proteger, se mascarava de homem. Tinham o mesmo objetivo de chegar à Europa e contra todas as adversidades tentavam tirar vantagens do encontro. No filme seguinte, “Camille” (2019), Lojkine ficcionou a vida da fotógrafa francesa freelancer Camille Lepage, acompanhando as suas incursões na República Centro-Africana durante a última guerra civil do país (2013-2014), até à emboscada em que a repórter, caída no fogo cruzado de duas fações rivais, foi assassinada. Pese embora o rigor e a secura destas obras há pouco revistas, nada previa a força do filme seguinte de Lojkine: “A História de Souleymane”. Neste caso, o realizador filmou a África que consegue ver da janela do seu apartamento, no norte do 10º bairro de Paris, na zona da Gare du Nord e na fronteira com Barbès. O nosso herói, Souleymane, pedala sem parar, dia e noite, numa azáfama constante. É estafeta. Guineense, chegou de Conacri, não tem documentos e, quando o filme começa, está a 48 horas da entrevista que analisará o seu pedido de asilo. Lojkine procura a experiência física: ‘cola’ a audiência à bicicleta de Souleymane, vamos com ele para todo o lado, é ele que nos conduz. Pela primeira vez, um filme europeu decide dar protagonismo e ponto de vista a esta nova vaga de escravos do ‘capitalismo digital’ que servem a Europa porta a porta, em condições de vida e de trabalho indignas. Acontece que “na minha cabeça, eu não tenho direito de morrer”, dirá Souleymane mas tarde, ao pensar na mãe que deixou. O momento passa-se na tal entrevista que é um tour de force de 20 minutos, uma das cenas de cinema mais intensas de tudo o que foi visto em 2024.