Quando o filme abre, estão em cena três pessoas ao balcão de um bar e alguém olha e interroga. São dois homens e uma mulher, ela no centro. Um dos homens é asiático, o outro caucasiano, a mulher asiática também. Conversam, mas nós não ouvimos o que dizem, vemos apenas as posturas corporais. Posições, expressões de rosto, movimentos, quem fala e quem ouve, quem está na conversa e quem fica de fora. Entretanto, do lado de trás da câmara alguém comenta, em diálogo, também. Quem serão aqueles três? Colegas de trabalho, amantes de ontem, amorosos futuros? Um casal e um amigo? Quem dorme com quem, quem vai dormir com quem ao fim da noite — e são já três da manhã? E nós, espectadores, a olhar, a seguir as interrogações, a fazer outras, por dentro. O filme não tem pressa, nunca vai ter pressa, na toada elegante com que, em modo de parcimónia dramática, nos vai conduzir, contar a história. Que história? A da vida que conduziu até àquele momento em que a fita começa, no fundo, para dar resposta às interrogações com que nos espicaça. Todavia, vale a pena volver a essa cena inicial porque a câmara, depois de se quedar em neutro posicionamento (talvez a querer ser plano subjetivo, o olhar de uma pessoa), se põe em lento movimento, suave zoom ótico sobre um dos observados, a mulher. E eis que ela vira o rosto para nós, olha a câmara de frente, numa expressão de alguma severidade, tensa. A lente que a guarda deixa de ser neutra ou subjetiva, passa a ser, apenas, o nosso olhar, estilhaçando a quarta parede das convenções cinematográficas. De repente, vêm à cabeça os planos finais de “Os Quatrocentos Golpes” de Truffaut, ou aqueloutro, similar, de “Mónica e o Desejo” de Bergman. Antoine Doinel/Jean-Pierre Léaud e Monika/Harriet Andersson fazem exatamente o mesmo — e são interrogações que nos convocam e exposições que nos oferecem. E se, em 1959, François Truffaut não era ingénuo ao cavar esse procedimento, em 2023 nenhum cineasta está autorizado a invocar ausência de memória. É um olhar que nos puxa para dentro do filme, que nos obriga ao drama. Celine Song, a argumentista/realizadora, sul-coreana de nascimento, mas a laborar no cinema americano, irá acrescentar, em várias entrevistas, que o ponto de partida do filme foi uma situação autobiográfica que viveu, o que acrescenta peso à citação.
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“Vidas Passadas”: a história de um amor banal sem lugares-comuns
Ele procura-a, ela deixa-se procurar. “Vidas Passadas”, filme independente cerzido entre a Coreia e os Estados Unidos, é cinema estimulante. Nomeado para os óscares de Melhor Filme e Melhor Argumento, estreia-se esta quinta-feira