Correm ventos favoráveis no mundo do cinema português de animação, essa vertente das fitas com bonecos que sempre conviveu de perto com os filmes com gente de carne e osso, mas existe num território próprio. Há prémios internacionais, reconhecimento e uma exposição pública intramuros como nunca antes. Para tanto muito contribuiu a nomeação para o Óscar da curta-metragem “Ice Merchants” — com uma surpreendente estreia autónoma em sala que acolheu mais de 11 mil espectadores! — e as primeiras longas a encontrar o nosso público, como “Os Demónios do Meu Avô” de Nuno Beato, ora a chegar e a continuar um forcejo que já se sabe não ir morrer na praia.
A história centra-se numa jovem executiva que volta à aldeia natal quando tem a notícia de que morreu o avô que a criou. O filme constrói-se maioritariamente na técnica de animação de volumes, tendo uma primeira parte em 3D. E logo nisso há algo que merece realce — e de que gosto muito.
Nuno Beato reserva o 3D para tudo o que se passa na cidade, em cores frias, texturas de polietileno, mostrando uma inabitabilidade anímica, uma vida focada na produtividade, na concorrência, na escalada salarial, na solidão. E organiza a narrativa em planos que se repetem, em ícones avaliatórios, em comportamentos de competição. Ao invés, é na aldeia que há a materialidade das coisas, as rugosidades, as tonalidades quentes da terra, do barro, da luz solar.
O que gosto é da transição, quando Rosa, a protagonista, pisa de pé descalço o chão da aldeia e o desenho se desfaz e transmuta num mundo ‘verdadeiro’. E a ‘verdade’ vem da espessura, da volumetria, das pedras. No fim do filme haverá outra transmutação, os ‘demónios’ a sublimar-se em poeiras estelares. Entre uma e outra, um percurso de descoberta e reparação.