A estilista das lágrimas amargas que Margit Carstensen deu a Fassbinder em 1972, a sua empregada submissa, interpretada por Irm Hermann, e a amante da primeira, Karin, papel de Hanna Schygulla, deram agora origem a um Peter que é realizador de cinema (Denis Ménochet), a um igualmente submisso Karl (Stefan Crepon) que ama o patrão em segredo, e a um amante árabe chamado Amir (Khalil Ben Gharbia), que vai deixar o protagonista sucumbido de amor. Filme de homenagem em huis clos, “Peter Von Kant” é uma história de fantasmas em jeito de autorretrato intimista, tal como François Ozon nos contou no último Festival de Berlim.
Não lhe pergunto o que o levou a Fassbinder, porque já tinha adaptado, em 2000, uma peça dele em “Gouttes d’eau sur pierres brûlantes”. Pergunto-lhe antes o que o fez regressar?
Fassbinder esteve sempre por perto. O pensamento, a visão do mundo e a obra dele assombram-me desde sempre. Foi uma obra muito importante para mim desde os tempos de estudante. Ajudou-me a encontrar o meu caminho. Admiro a sua liberdade, a sua capacidade de trabalho, os seus ‘milagres’ de produção: “As Lágrimas...” foi rodado em dez dias, num único apartamento, com os atores da sua trupe de teatro à volta de uma cama. Admiro a lucidez e a visão radical dele sobre a hipocrisia da sociedade alemã da segunda metade do século XX. A sua energia criativa inacreditável fascina-me e serve-me há muito de exemplo.
Criou a pandemia condições para que este filme se fizesse agora?
Em grande parte sim, porque é um filme que eu produzi sozinho, com um orçamento curto, três semanas de rodagem num só set e uma equipa em recolhimento. E aliviou-me escrever este guião enquanto estávamos todos fechados em casa. Mas há muito tempo que eu imaginava algo em torno de “As Lágrimas Amargas...”. É uma obra-prima. Estreou-se aqui em Berlim há precisamente 50 anos.
Porquê um remake?
Foi a intuição. Sempre vi este filme como um autorretrato de Fassbinder. Ele escreveu a peça aos 25 anos. A última mulher dele, que eu conheci quando fiz “Gouttes d’eau...”, Julianne Lorenz [e que montou todos os filmes de Fassbinder de 1977 até à sua morte, em 1982], confirmou-me que “As Lágrimas...” foram inspiradas na história de amor infeliz entre Fassbinder e o ator Günther Kaufmann. Foi isto que me fez mudar o género das personagens e criar um Peter em vez de Petra. Além disso, a Margit Carstensen foi perfeita no filme de Fassbinder. Nenhuma outra atriz poderia igualá-la.
Este filme é um autorretrato de Fassbinder e, em simultâneo, um autorretrato seu?
A pergunta é complexa. Eu diria que, pela minha vontade de me aproximar de Fassbinder, acabo por me refletir no espelho desta nova versão. Todos os realizadores podem identificar-se com Peter Von Kant.
Como assim?
Todos os realizadores são ditadores à sua maneira. É possível ser um bom ditador e um mau realizador, ou vice-versa? Isso já não sei. Mas o realizador tem poder. E o cinema é uma sociedade estratificada, com hierarquias. Saber usar esse poder, lidar com uma equipa, com atores, avaliar a amizade mas também o domínio e a manipulação que existem neste trabalho são questões que qualquer realizador tem que enfrentar. O realizador é uma criança mimada que deseja poder brincar com os seus brinquedos preferidos. Um Deus a criar o seu mundo. Acontece que todos acabam por ter que lidar com a realidade. E isto pode causar sofrimento. Há uma parte de mim na personagem, claro.
Fassbinder sofreu seguramente com isso.
Era um ser humano difícil, tinha uma reputação de intratável nas relações de trabalho. Tal como diz a personagem de Sidonie, que Isabelle Adjani interpreta no meu filme, “tu finges estar no lado dos fracos quando na realidade estás no lado mais forte.” Mas eu não gosto de conflitos. Detesto o sadismo. Prefiro a confidência.
Os seus filmes começam na escrita do argumento?
Não, começam na minha cabeça. Preciso de sonhar os filmes antes de os fazer. Durmo com os problemas das histórias e muitas vezes acordo com as soluções. Também preciso de saber o fim do que quero contar, saber aonde vou dar. Só depois começo a escrever.
Fassbinder teve uma relação terrível com a comunidade gay do seu tempo, há histórias de disputas violentas, odiavam-se mutuamente. Um cineasta como Rosa von Praunheim é ainda testemunha viva disso. O seu filme propõe uma versão mais terna do choque?
Eu acho que o problema vem disto: Fassbinder nunca estabeleceu uma diferença entre a heterossexualidade e a homossexualidade nos seus filmes. Mostrou que o poder e a manipulação eram os mesmos para quem é straight e quem é gay. Hoje continuamos a ser uma minoria mas aceitamos melhor a ideia de que as estruturas de poder são iguais. Só que esta questão não era evidente nos combates políticos da comunidade gay alemã dos anos 70. De qualquer forma, eu não quis fazer um biopic sobre Fassbinder, embora haja muito dele em Peter [Oskar Rohler fez esse biopic em 2020, “Enfant Terrible”, filme que Ozon não tinha visto à data da entrevista]. E concordo consigo: acho que ele sofreu. Tento compreendê-lo na sua complexidade.
Talvez o seu Peter seja mais vulnerável que o próprio Fassbinder...
Talvez seja mais otimista do que Petra. Também acaba enclausurado e sozinho, mas com um olhar aberto sobre a ficção e as imagens de Amir, o seu amor. É a prova de que o sofrimento amoroso, afinal, não foi inútil.
Khalil Ben Gharbia, que ocupa o lugar que foi de Hanna Schygulla, é uma cara desconhecida no cinema. Como o encontrou?
Fiz um longo casting com atores negros e árabes da idade dos amantes de Fassbinder. Tiveram todos medo do papel, sem exceções. Fiquei muito desapontado. Começámos então à procura de atores mais novos, menos preconceituosos e com a cabeça aberta. A sensibilidade de Khalil adequava-se à frescura dos seus 19 anos e interpretar um rapaz gay não foi um problema para ele.
Peter sonha com o amor puro. Você também?
E quem não sonha? Peter é um anjo e um monstro. Gostaria de ter um amor livre, sem contrariedades, sem ciúmes. Mas esse amor não existe. “As Lágrimas Amargas...” da peça e do filme de Fassbinder são artificiais e é isso que as torna tão belas. São teatrais e cerebrais. No meu filme quis que fossem reais.
Continua a filmar a um ritmo impressionante, não há ano sem um filme seu, se somarmos às longas as suas curtas dos anos 90 já tem quase tantos filmes como anos de vida. Precisa deste ritmo alucinante?
É o meu ritmo. Cada um cria como pode. E sempre tentei estar próximo da produção para poder controlar o que faço, aprendi isso com Éric Rohmer, que foi meu professor. Eu gosto das rodagens, ao passo que para muitos colegas meus elas são uma tortura. Muitas pessoas dizem-me que eu não tenho uma vida, só faço filmes. Eu respondo-lhes que fazer filmes é viver. E mais intensamente ainda!