E ao terceiro dia, chegaram os canibais. Vieram pela mão de Luca Guadagnino: depois dos horrores ‘argentianos’ de “Suspiria” (em 2018), o autor do memorável “Eu Sou o Amor” resolveu adaptar um romance de Camille DeAngelis sobre uma estirpe de humanos com necessidades especiais: o consumo de carne humana. Não é algo que tenha de acontecer sempre, sequer todos os dias ou numa cadência regular, é qualquer coisa plantada no ADN, no cérebro, na alma, como se fosse uma toxicodependência, uma compulsão, um vício sem remissão possível.
O filme centra-se numa rapariga cujos sintomas começaram ainda criança, quando devorou uma babysitter. Agora vai, estrada fora, à procura da mãe que nunca conheceu. Produção ítalo-americana, rodada maioritariamente no Ohio, com distribuição mundial da MGM (detida, agora, pela Amazon), “Bones and All” é uma variação engenhosa, dramaticamente bem arquitetada, do filme de vampiros misturada com o clássico casal de jovens desesperados, ‘on the road’, que tanto bom cinema nos deu, juntamente com um monte de ganga e desperdício de que todos nos esquecemos até só ficar o minério valioso: o “They Live by Night” de Nicholas Ray ou “Os Noivos Sangrentos” de Terence Malick. A protagonista, Taylor Russell, é pouco conhecida, o parceiro romântico é Timothée Chalamet, a quem poderíamos chamar ‘ídolo das matinées’ se o conceito ainda fizesse sentido neste tempo em que as adolescentes que por eles se apaixonavam chegam a casa às 6 da manhã.
Todavia o grande papel do filme - na grelha de partida para o Oscar de Melhor Ator Secundário, avento eu - é o de Mark Rylance: um velho espécimen canibal que está farto de viver em insulamento e ganha uma muito especial inclinação pela jovem rapariga que lhe passa pelo radar dos odores. Ah, sim, entre si, eles reconhecem-se pelo cheiro… Com algumas cenas de virulência ‘gore’, onde sobressai a sangueira nos rostos depois de se alimentarem, como cães em avidez de carniça, “Bones and All” é, acima de tudo, uma tragédia existencial de pessoas que não são como todas as outras. Não chega ao romantismo terminal do “Nosferatu” de Murnau ou do “Dracula” de Coppola. Mas gostava…