"Mesmo na noite mais triste, há sempre alguém que resiste, há sempre alguém que diz não". Foi Manuel Alegre quem escreveu este excerto, em plena ditadura fascista, mas foi Ana Gomes quem citou de cor o poema, perante o próprio autor. Num debate por zoom, que encerrou mais um dia de campanha eleitoral, o tom foi de resistência activa. Os tempos não estão para menos, garante o fundador do PS e duas vezes candidato à Presidência da República. "A democracia está a ser minada por dentro, e desta vez não é com tanques e espingardas na rua".
Nuvens negras pairam sobre o atual momento político e foi hora de carregar nas cores para apelar ao voto direto. Ana Gomes tem falado "em forças ocultas", Manuel Alegre concorda que "assistimos a um processo de desconstrução da democracia e isso não pode ser desvalorizado".
Não pode, mas, foi. A referência ao Chega ou a André Ventura nunca foi direta, mas não podia ser mais evidente nas intervenções, tanto de Ana Gomes como de Manuel Alegre. "A falta de comparência do PS desvaloriza o facto de, pela primeira vez, haver uma candidatura que põe em causa a Constituição e quer destruir a democracia", diz o poeta. E os exemplos da história não são para desvalorizar. A atitude da direção do PS "lembra a atitude dos socialistas franceses quando apareceu o Le Pen-pai", recorda Alegre. Na altura os 'amies socialistes' de Mário Soares até viram com bons olhos o sucesso do líder da Frente Nacional, como forma de retirar espaço de manobra à candidatura de Jacques Chirac, mas as coisas correram mal e "veja-se onde chegou o PSF, reduzido a uma expressão muito pequena".
Marcelo pode ser o adversário direto de Ana Gomes. Mas há mais direita para lá de Marcelo. Ventura (que vem subindo nas sondagens) ameaça diretamente a candidata, não só nas palavras, mas também nas probabilidades e estatísticas. Tentar ignorá-lo, como inicialmente a candidatura procurou fazer, pode não ser a melhor estratégia.
Alegre, Soares, Zenha e ... Gomes: a mesma luta?
Com dois fortes candidatos à direita, todos os trunfos à esquerda são válidos para reforçar a corrida de Ana Gomes. Os elogios à "coragem" e à "capacidade de resistência à adversidade" da candidata vêm dos tempos da ditadura. "Tivemos muitos anos de fascismo e nunca desistimos.Não desistiremos agora e Ana Gomes não é de desistir".
As trincheiras foram cavadas e o selo de garantia de "verdadeira socialista" foi impresso na candidatura de Ana Gomes pela 'autoridade' de Manuel Alegre. À "querida amiga e camarada" (e a todos os que a seguiam virtualmente, claro), deixou a certeza de que é ela quem "neste momento representa uma corrente e uma cultura do socialismo democrático, que não podia perder por falta de comparência".
Para a candidata, o trunfo de ter Alegre na campanha tem "um significado muito, muito especial". "Lembra-me os combates que tu, Mário Soares e Zenha travaram", disse em resposta. Sinal de que o combate está a ser duro, já ninguém tem dúvida. Resta, mesmo, o toque a rebate. "Nós, os socialistas que lutaram contra a ditadura e pelo aprofundamento da democracia não somos de desistir", prometeu Ana Gomes.
O Zoom é uma arma em tempos de pandemia. Sem povo na rua e com o país a entrar em confinamento, este é o grande palco da candidata, que traz todos os amigos à cena. Rui Tavares, fundador do Livre, lá esteve hoje também. Coube-lhe a tarefa de apresentar os 21 compromissos eleitorais da candidata para o seu mandato em Belém. A dúvida está em saber se lá chega. De certo, neste momento, Ana Gomes só tem que o caminho que tem pela frente é de pedras.