Política

“Condenados a ser irmãos” e uma barrica de Porto para “relações excelentes”: Marcelo em Angola

Marcelo e João Lourenço apareceram na conferência de imprensa com a cumplicidade de quem tinha aberto uma garrafa de Porto com 65 anos na noite anterior. “A dívida não é um tabu”, diria João Lourenço. No Parlamento, o Presidente português falou de “fraternidade” e da inevitabilidade dos que estão unidos pelo sangue

JOÃO RELVAS/ LUSA

Na noite dia anterior, os dois presidentes tinham estado ali, no Palácio da Cidade Alta, a comemorar o aniversário de João Lourenço. Era uma festa restrita, privada, não mais de umas 20 pessoas, porque Lourenço é um homem reservado. Por isso mesmo, o sinal político de aproximação foi ainda mais forte. Ao início da tarde desta quarta-feira - primeiro dia da visita de Estado de Marcelo Rebelo de Sousa a Angola - eram dois chefes de Estado cúmplices ("ontem rimos muito", disse o líder angolano) que apareceram nos jardins do palácio presidencial, debaixo de um calor húmido impossível, para a conferência de imprensa em que o Presidente português havia de revelar os presentes que levou ao seu anfitrião.

A visita comporta dois aspetos, um simbólico e outro pragmático. Do ponto de vista político e diplomático, ambos os presidentes destacaram o momento único vivido nas relações entre os dois países. Marcelo diria que, sendo professor habituado a dar notas, "classificaria as relações políticas económicas e bilaterais como excelentes, uma classificação de topo para" o que se viveu "nos últimos seis meses" de aproximação. "Num mundo imponderável e imprevisível é importante que haja parceria estratégicas seguras", referiu.

A seguir, prometeu aquilo em que é melhor. O 'Ti Celito' ofereceu os afetos que deverá distribuir nos próximos dias em contactos com a população: "Tentarei corresponder naquilo que é muito importante, naquilo que é importante, mas fazendo-o com afeto. Entre os vossos, um afeto vale mais do que mil intenções".

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João Lourenço preferiu sublinhar o lado mais pragmático, o dos resultados: "Praticamente esgotámos todos os domínios de cooperação entre os dois países", afirmou, lembrando que 11 dos 35 instrumentos de cooperação foram trabalhados nos últimos seis meses e no no âmbito desta visita. Segundo Marcelo, é uma forma de resolver os problemas reais: "Comecei esta visita de Estado visitando o memorial Agostinho Neto. Lá, numa parede, está escrito: o mais importante é resolver o problemas das pessoas".

"A dívida não é um tabu"

Boas relações e diplomacia mas com a economia em pano de fundo. Marcelo falou da aceleração da convenção sobre a dupla tributação" de rendimentos do trabalho e das empresas, sobretudo das PME. Para o Presidente português, todos os acordos, com este à cabeça, devem sair do papel e ser aplicados no terreno.

A questão das dívidas às empresas portuguesas será o dossiê mais importante que as duas delegações têm entre mãos, sobretudo por causa da recuperação da "confiança" dos agentes económicos portugueses, como enfatizou Marcelo.

"A dívida de angola para com Portugal não é um tabu, é para se falar abertamente", começou por responder João Lourenço - embora nenhum dos presidentes falasse dos valores que estão em causa. "Existir dívida é algo absolutamente normal, desde que certificada e desde que o devedor assuma o compromisso de pagar. O que se está a verificar", reconheceu o Presidente angolano. O processo ainda está em curso, estarão neste momento certificados dois terços da dívida reclamada pelas empresas portuguesas e já terão sido pagos efetivamente cerca de 145 milhões de euros segundo o Expresso apurou e noticiou na edição de sábado passado.

"O valor exato da dívida é assunto a ser visto ao nível dos dois Ministérios das Finanças, mas gostaria de assumir a vontade firme de Angola no sentido de assumir os compromissos para com o Governo português e outras instituições portuguesas a que Angola deve", comprometeu-se João Lourenço.

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Sobre a forma de realização dos pagamentos, de acordo com o líder angolano, esta "não é imposta". Lourenço respondia a uma pergunta dos jornalistas sobre o facto de parte dessas dívidas ser paga em títulos do tesouro, o que estava a gerar críticas por parte das empresas portuguesas. "Angola propõe aos credores as diferentes formas de pagamentos que tem e negocia com esses mesmos credores", respondeu João Lourenço. "Não existe nenhum credor a quem tenham sido impostas formas de pagamento que são negociadas."

Uma barrica de porto para festejar

A festa de aniversário acabou por ser tema da conferência de imprensa, até porque Marcelo Rebelo de Sousa fez algum mistério sobre os presentes que ia oferecer ao homólogo angolano. "O melhor presente foi a presença em si, a presença em Angola", disse João Lourenço numa fase mais descontraída da conversa, mencionando "a forma de estar informal" do Presidente português, rematando com um significativo "rimos bastante".

Marcelo Rebelo de Sousa deposita uma coroa de flores no Memorial a António Agostinho Neto
JOÃO RELVAS/ LUSA

Marcelo Rebelo de Sousa resolveu então satisfazer a "curiosidade" dos jornalistas para revelar que, para cobrir a vertente do "passado recente", resolveu oferecer um álbum com fotos das visita de João Lourenço a Portugal realizada em novembro e feito "em tempo recorde". E "para celebrar o presente e brindar ao futuro", abriram uma "barrica de vinho do Porto" com idade do Presidente, uma colheita rara com 65 anos, e uma garrafa "personalizada à medida daquele que merecia a oferta".

A participação no aniversário não terá sido apenas a participação numa festa, mas um sinal político de aprofundamento das relações entre os dos chefes de Estado e, logo, entre os dois países. "Quem acabou por ter um presente fui eu, ao participar num momento tão pessoal", admitiu. Um dos objectivos de Marcelo com esta visita é tentar que as boas relações pessoais sejam determinantes para as relações políticas, diplomáticas e económicas entre os dois países.

"Condenados a ser irmãos"

Marcelo Rebelo de Sousa saiu dos jardins do palácio presidencial com a mais alta condecoração da República angolana, a Ordem Agostinho Neto. Para cumprir uma agenda apertada e ao minuto, chegou atrasado à Assembleia Nacional para discursar perante os deputados dos vários partidos angolanos - daí que tivesse de fazer um discurso abrangente e a tocar todas as sensibilidade. Optou pela "fraternidade".

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“A fraternidade persiste, apesar de todos os agravos e injustiças do passado”, disse Marcelo Rebelo de Sousa numa intervenção emotiva e que rematou com a referência a uma realidade a que é impossível fugir: “Nós estamos condenados, senhores deputados, a sermos irmãos” e a tirar dessa “inviabilidade” vantagem para os respetivos povos.

O Presidente português focou “a gratidão e respeito” de Portugal em relação a Angola e discorreu sobre todas as formas de “fraternidade” entre os dois países. "Fraternidade é mais do que amizade, é mais do que a cumplicidade nas horas más e boas. É mais do que a parceria economia, social e política” e até mais do que a língua e a cultura. “A fraternidade não se escolhe, nasce mesmo quando não se espera.”

É esse tipo de relação, segundo Marcelo, que "faz ultrapassar queixumes e juras de zangas eternas que todas as famílias conhecem ao longo da sua vida". Este parece ser agora um tempo de apaziguamento. Marcelo Rebelo de Sousa sairia mais uma vez à pressa, para a Universidade Agostinho Neto, para fazer uma intervenção numa faculdade onde já deu aulas.