Tomás Malho nunca gostou de estudar. No liceu, ir às aulas era o suficiente para passar de ano, mesmo sem boas notas, mas na faculdade isso já não chegava. Rapidamente começou a marcar passo no curso de Engenharia Geológica. Para aliviar a frustração e o fracasso, “refugiava-se” cada vez mais nos videojogos. “Era aquilo que sabia fazer bem.”
A pouco e pouco, tudo o resto foi ficando para trás. A faculdade, os amigos e até a música, que antes lhe dava prazer. Mentia aos pais, deixou de ir às aulas e faltava aos exames. Fazia o que fosse preciso para conseguir jogar Dota2, um jogo eletrónico de estratégia, semelhante ao League of Legends, que passou a tomar conta da sua vida. “Ficava o dia inteiro a jogar", conta.
“Era muito difícil quebrar o ciclo. Várias vezes o meu pai dizia ‘tens um problema, tens um vício’, o que não era fácil de ouvir. Tinha os meus pais sempre a tentar tirar-me [do computador], mas eu já estava muito fundo no buraco”, recorda o jovem de 24 anos, no mais recente episódio do podcast “Que Voz é Esta?”, dedicado à dependência de ecrãs.
João Nuno Faria, psicólogo e coordenador do núcleo de intervenção no comportamento online da Clínica PIN - Partners in Neuroscience, explica que a utilização da internet e dos videojogos como “fuga a emoções difíceis, como a culpa, a vergonha ou a ansiedade”, é um dos nove critérios para o diagnóstico de dependência, que pode mesmo gerar síndrome de privação.
“Há uma tristeza muito acentuada ou uma zanga muito explícita quando se é privado do videojogo ou quando se é abruptamente retirado dele. Há famílias que, no limite, tiram a ficha do computador e há casos gravíssimos em que isso dá origem a agressões violentas”, diz.
Igualmente convidada a participar no podcast “Que Voz é Esta?”, a investigadora e psicóloga clínica Ivone Patrão tem também acompanhado vários casos de dependência de ecrãs, que têm vindo a aumentar nos últimos anos.
“No pós-pandemia, já tive casos bastante graves de dependência de internet. Jovens que já não se levantavam da cadeira, nem sequer para fazer as necessidades mais básicas. Ficavam 24 horas sobre 24 horas a jogar e havia alguém que lhes levava comida e que limpava o que houvesse para limpar”, relata.
A gestão do tempo de ecrãs transformou-se num dos principais focos de conflito no seio das famílias e, na maior parte das vezes, são os pais que pedem ajuda. No caso de Tomás, no entanto, acabou por ser o próprio a reconhecer que tinha um problema e a pedir para iniciar tratamento.
Há dois anos, começou a ser acompanhado por dependência de vídeojogos e ainda mantém consultas quinzenais, num processo terapêutico que assume estar a ser muito difícil, e que já teve recaídas, mas que garante estar a funcionar.
No podcast, os dois psicólogos recusam diabolizar os ecrãs, no geral, e os vídeojogos, em particular, salientando que, usados com moderação, podem trazer grandes benefícios para o desenvolvimento, por exemplo no que diz respeito à capacidade de resolução de problemas e à aprendizagem do Inglês. Mas lamentam que o risco de adição não esteja a ser devidamente comunicado.
“Enquanto que no álcool ou nas apostas desportivas há sempre uma mensagem a apelar à moderação, no caso dos videojogos não há mensagem nenhuma”, critica João Nuno Faria.
A falta de supervisão e moderação parental, não só quanto ao número de horas de ecrã, mas também quanto aos conteúdos que são visualizados, aumenta o risco de os jovens virem a desenvolver dependência, alerta Ivone Patrão.
Quais são as características dos jogos que os tornam mais viciantes, como funciona o mecanismo da adição, que linha separa o tempo a mais do uso problemático e da dependência e qual a melhor forma de os pais e as escolas gerirem as tecnologias, incluindo o smartphone, são algumas das questões debatidas no mais recente episódio do podcast.
“Que voz é esta?” é o nome do podcast do Expresso dedicado à saúde mental. Todas as semanas, as jornalistas Joana Pereira Bastos e Helena Bento dão voz a quem vive com ansiedade, depressão, fobia ou outros problemas de saúde mental, ouvindo igualmente os mais reputados especialistas nestas áreas. Sem estigma nem rodeios, fala-se de doenças e sintomas, tratamentos e terapias, mas também de prevenção e das melhores estratégias para promover o bem-estar psicológico. O podcast conta com o apoio científico de José Miguel Caldas de Almeida, psiquiatra e ex-coordenador nacional para a saúde mental.