As chamadas para o serviço de acompanhamento psicológico da linha SNS24 aumentaram desde que começou a guerra em Gaza, tal como tinha acontecido nos primeiros meses da guerra na Ucrânia, que já se arrasta há quase dois anos. É um dos sinais do impacto na saúde mental da divulgação de imagens chocantes de extremo sofrimento e violência.
“Há pessoas que estão a ter ataques de pânico e de choro incontrolável porque se veem completamente impotentes perante a situação [da guerra]”, explica Ana Mota Teles, psicóloga clínica que integra aquele serviço, no mais recente episódio do podcast ”Que Voz é Esta?".
As crianças são as mais afetadas pela exposição a este tipo de imagens, como as que têm sido divulgadas nos noticiários e nas redes sociais desde que Israel começou a bombardear a Faixa de Gaza, em retaliação pelo massacre de 7 de outubro perpetrado pelo Hamas.
Apesar de serem potencialmente traumáticas, muitas dessas imagens têm vindo a ser transmitidas nas televisões e, sobretudo, nas redes sociais sem nenhum tipo de aviso, fazendo crescer o medo e a ansiedade em muitas crianças que a elas assistem.
“Muitas vezes, as crianças transferem para pequenas coisas do dia-a-dia o medo que sentem ao ver estas imagens. Em qualquer episódio de maior tensão podem projetar uma possível guerra. Duas pessoas a discutir é o suficiente para entrarem em pânico porque é um conflito. E o que estão a começar a aprender é que, quando há um conflito, se pegam em armas. Temem que sobre para elas e que não consigam defender-se”, descreve Ana Mota Teles.
Sofia Ramalho, vice-presidente da Ordem dos Psicólogos, corrobora: “As crianças pequenas não têm a mesma capacidade de assimilar e compreender aquilo a que estão a assistir. Têm uma forma muito diferente de ver o tempo e o espaço. Para elas, é como se estivesse a acontecer na sala de aula ou na casa ao lado ou pudesse acontecer aqui mesmo.”
De acordo com a especialista, o efeito traumático "muitas vezes não é imediato, mas surge com o passar do tempo”. E, além das crianças, são especialmente suscetíveis as pessoas com “experiências prévias de ansiedade ou depressão” e também aquelas que sofram de stress pós-traumático fruto de situações de violência, cujas memórias podem ser ativadas perante as imagens de guerra que têm vindo a ser divulgadas.
Mas também pessoas que não tinham até aqui nenhuma perturbação de ansiedade estão a ser afetadas, nomeadamente mulheres que foram mães há pouco tempo e que estão, por isso, mais sensíveis.
De uma forma geral, toda a população dá sinais de desgaste psicológico em resultado da sucessão de acontecimentos disruptivos que tem vindo a enfrentar nos últimos anos: à pandemia seguiu-se uma crise económica, duas guerras atualmente a decorrer e uma espiral inflacionista que agravou substancialmente o custo de vida.
“O facto de se acumularem acontecimentos gera mais situação de stress. Há uma exposição frequente e sucessiva, uma passagem de um acontecimento para outro acontecimento, que aumenta a sensação de insegurança e a sensação de perda de controle”, adianta Sofia Ramalho.
A normalização da violência
No caso da guerra, a exposição muito prolongada a notícias e imagens de extremo sofrimento acaba, a prazo, por provocar uma “dessensibilização” face à violência. “Quando começamos a ficar muito habituados à exposição, ela deixa de ter impacto e tornamo-nos incapazes de processar emocionalmente a informação” e de sentir empatia face à situação das vítimas, explica a vice-presidente da Ordem dos Psicólogos.
Neste episódio do podcast, as duas especialistas deixam alguns conselhos sobre a melhor forma de gerir as emoções nestes tempos marcados por uma grande incerteza e de nos mantermos informados, mas protegendo ao mesmo tempo a nossa saúde mental.
“Uma das soluções para ajudar as pessoas a ultrapassar este tipo de circunstâncias é elas sentirem-se úteis, por exemplo através de donativos, de trabalho de solidariedade, campanhas ou manifestações. Sentirem-se úteis e em controlo é o que as mantém vivas do ponto de vista emocional, na resposta a uma situação destas”, diz Sofia Ramalho.
Reduzir o tempo despendido nas redes sociais e procurar fontes de informação rigorosas e credíveis são igualmente importantes, devendo-se evitar a todo o custo que crianças e jovens tenham acesso a imagens chocantes da guerra.
“Que voz é esta?” é o nome do podcast do Expresso dedicado à saúde mental. Todas as semanas, as jornalistas Joana Pereira Bastos e Helena Bento dão voz a quem vive com ansiedade, depressão, fobia ou outros problemas de saúde mental, ouvindo igualmente os mais reputados especialistas nestas áreas. Sem estigma nem rodeios, fala-se de doenças e sintomas, tratamentos e terapias, mas também de prevenção e das melhores estratégias para promover o bem-estar psicológico. O podcast conta com o apoio científico de José Miguel Caldas de Almeida, psiquiatra e ex-coordenador nacional para a saúde mental.