Que voz é esta?

“O trauma causa angústia e pânico. A pessoa não consegue dominar o corpo, é como se estivesse numa panela de pressão prestes a rebentar”

O trauma está associado a uma “angústia tremenda, ansiedade e pânico", explica Rui Aragão Oliveira, psicanalista e ex-presidente da Sociedade Portuguesa de Psicanálise. “É como se a pessoa, sem saber bem porquê, estivesse dentro de uma panela de pressão que pode rebentar a qualquer momento”. Oiça aqui o mais recente episódio do podcast "Que Voz é Esta"?" dedicado ao tema do trauma, com o testemunho de vida de Lara Diana, que passou por várias situações marcantes na infância e cuja adolescência foi uma fase de “muita revolta”

Quando Lara Diana tinha oito anos, os pais divorciaram-se. Ficou com a mãe e os dois irmãos, mais novos O pai, que na altura considerava o seu "melhor amigo", deixou Portugal para "viajar pelo mundo". Ao fim de pouco tempo, Lara mudou-se para casa de uma avó. "A minha mãe estava mesmo muito doente fisicamente. Tinha sido mãe muito cedo e não conseguia tratar sozinha dos filhos". Ao fim de três anos com a avó, volta para casa da mãe, onde fica um ano. Sai novamente e vai sendo acolhida por diferentes familiares ao longo dos anos seguintes. "Dos oito aos 23 anos, mudei de casa 12, 13 vezes."

Lara Diana, 24 anos e estudante de Psicologia em Lisboa
TOMÁS ALMEIDA

Tais mudanças obrigaram-na a saltar de escola em escola, o que tornou impossível a adaptação ao meio escolar. "Não tinha amigos quando era criança. E cheguei a sofrer bullying". Foi uma fase de grande instabilidade. "Os meus pais estavam a tentar lidar com a vida deles e eu acabei por ser colocada um pouco de parte. Tudo isto deixou cicatrizes emocionais", conta a jovem de 24 anos no mais recente episódio do podcast “Que Voz é Esta?” dedicado ao tema do trauma.

A adolescência foi uma fase de “muita revolta” e "situações de risco". "Bebia demasiado álcool, tinha comportamento autolesivos. A dada altura, estava a tomar tantos medicamentos que os meus pais já não sabiam o que fazer comigo. Não me deixavam ficar sozinha em momento algum. As pessoas mais próximas e os amigos olhavam para mim e já não me conheciam. Eu vivia na berma do precipício."

O que é o trauma? A que sentimentos está associado? Rui Aragão Oliveira, psicanalista e ex-presidente da Sociedade Portuguesa de Psicanálise, explica que o trauma “está associado a uma desconexão entre o acontecimento traumático em si e a natureza dos afetos", dissociação esta que "normalmente se traduz numa angústia tremenda, ansiedade e pânico.” "A pessoa sente tudo isto, sente que não consegue dominar o seu próprio corpo, mas não consegue compreender o que suscita tais reações, nomear os problemas e comunicá-los. É como se estivesse dentro de uma panela de pressão que pode rebentar a qualquer momento."

Há acontecimentos que, pela sua gravidade, pelo facto de ocorrerem inesperadamente, pela extensão dos efeitos e pela sua dimensão trágica, tornam-se potencialmente traumáticos para a generalidade das pessoas envolvidas. São exemplo disso as experiências de guerra, o envolvimento em atentados ou em acidentes com vítimas mortais.

No entanto, a existência de trauma depende não da situação em si, mas da forma como as pessoas processam e interpretam o acontecimento. Depende da perceção e da experiência subjetivo do indivíduo. Isto para dizer que o mesmo acontecimento pode causar trauma numa pessoa, mas não noutra pessoa que tenha passado exatamente pelo mesmo.

TOMAS ALMEIDA

Formador desde 2006 na Sociedade Portuguesa de Psicanálise e colaborador do Observatório do Trauma do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Rui Aragão Oliveira explica que fatores podem efetivamente contribuir para o desenvolvimento de perturbação de stress pós-traumático e outras doenças.

"As pessoas, no geral, sentem que têm um funcionamento psíquico que as protege e serve não só para conhecer o outro e poder interagir, como para manter um certo equilíbrio. É uma espécie de segunda pele. Nas pessoas que desenvolvem um trauma, é como se esta pele não existisse. E expressam precisamente isso. Dizem que se sentem em carne viva. Portanto, qualquer coisa que aconteça tem um impacto interno desproporcionalmente brutal."

TOMAS ALMEIDA

Aos 19 anos, foi diagnosticada uma perturbação borderline a Laura Diana, que está no 3.º ano do curso de Psicologia. “No meu entender, a perturbação deriva muito do trauma do abandono. Por muito que não me tenham abandonado diretamente, há uma parte de mim que sentiu isso.”

Recorrendo, tal como Rui Aragão Oliveira, a uma figura de estilo, a jovem diz que ter perturbação borderline "é o equivalente a ter 90% do corpo coberto com queimaduras de terceiro grau". A doença traz "muita instabilidade emocional" e "é difícil estar na escola, no trabalho ou com a família e saber que se tem reações que os outros não vão entender".

“Passei grande parte da minha vida - e acho que essa foi das partes mais difíceis - a saber que os outros não se sentem como eu me sinto. A dada altura, comecei a duvidar dos meus próprios sentimentos. Por mais que a jovem fizesse, a dor não desaparecia. ”Saí, conheci pessoas, falei sobre como me sentia, expressei-me de várias outras maneiras, mas o trauma não passou. Tentei fazer tudo, mas, por mais que corresse, não conseguia fugir de tudo aquilo que tinha vivido."

Integrar o trauma

O trauma não se trata de um momento para o outro, diz Rui Aragão Oliveira, "vai-se tratando". "Há diferentes metodologias e escolas de pensamento, diferentes terapias e medicamentos, mas o mais importante é integrar a experiência de trauma, atribuindo-lhe um novo significado."

Depois, mais do que dissecar acontecimentos passados e expressar continuamente o quão dolorosos foram, é importante explorar outros caminhos. "Frases como ‘aconteceu-me isto e eu sofri’ desta e daquela maneira são frequentemente verbalizadas, mas a certa altura é bom colocar a questão ao contrário e pensar: 'Ok, aconteceu-me isto, mas o que posso fazer com a minha própria história?'. Não podemos recuar no tempo, é verdade, mas podemos alterar a forma como guardamos a memória desses acontecimentos."

Lara Diana concorda com essa abordagem. Em dezembro do ano passado, numa fase que descreve como a "pior da vida, com muitos pensamentos negativos e comportamentos destrutivos", tomou a decisão de fazer psicoterapia, eliminou hábitos menos saudáveis e deu prioridade ao sono, à alimentação e ao exercício físico.

“São necessidades básicas, mas às vezes esquecemo-nos disso.” Interiormente, também houve uma mudança. "Passei todos estes anos frustrada por a minha vida não ser como eu queria que fosse. Depois, percebi que não iria conseguir mudar tudo o que me acontece e está à minha volta, mas que podia mudar a posição em que estou. Comecei a olhar para a frente. Deixei de me carimbar com os meus problemas e aprendi que sou mais do que isso. Aprendi que, afinal, tenho uma identidade."

Tiago Pereira Santos e João Carlos Santos

“Que voz é esta?” é um novo podcast do Expresso dedicado à saúde mental. Todas as semanas, as jornalistas Joana Pereira Bastos e Helena Bento vão dar voz a quem vive com ansiedade, depressão, fobia ou outros problemas de saúde mental, e ouvir os mais reputados especialistas nestas áreas. Sem estigma nem rodeios, vão falar de doenças e sintomas, tratamentos e terapias, mas também de prevenção e das melhores estratégias para promover o bem-estar psicológico. O podcast conta com o apoio científico de José Miguel Caldas de Almeida, psiquiatra e ex-coordenador nacional para a saúde mental.