Todos os dias, ao acordar, Filipa Almeida, de 28 anos, olha-se ao espelho e tem de lutar para afastar da cabeça os pensamentos negativos que tem sobre si própria. Desde pequena, carrega uma voz interior “muito crítica” que lhe diz que não é boa o suficiente ou merecedora do amor ou reconhecimento dos outros.
“Costumo dizer que tenho uma Filipa ao meu lado a criticar tudo o que eu faço, a dizer imensas críticas e coisas más. Diz que eu não sou boa o suficiente, diz que as pessoas não gostam realmente de mim, que me vão abandonar ou rejeitar, se eu for de determinada forma”, desabafa a jovem analista de dados neste episódio do podcast do Expresso dedicado à saúde mental.
Oiça aqui o episódio:
Com “pânico” da rejeição, Filipa esforça-se por agradar aos outros, mas sente sempre que dá muito mais de si do que aquilo que recebe em troca.
A falta de amor próprio acompanha-a desde criança e para isso terá contribuído o facto de só ter conhecido o pai aos seis anos e de o encontro não ter sido o que idealizara, o que a fez crescer com um sentimento de abandono e rejeição.
A verdade é que os primeiros anos de vida são determinantes para a formação da autoestima, sublinha o psiquiatra e psicoterapeuta João Carlos Melo, autor do livro “Nascemos Frágeis e Recebemos Ordens para Sermos Fortes - Um olhar sobre o narcisismo e a auto-estima”.
“O bebé vai construindo dentro de si uma determinada auto-imagem que se vai formando através dos olhos da mãe, como se fosse um espelho. Conforme aquilo que a mãe devolve, assim a criança vai construindo a sua autoestima”, diz.
As experiências e realizações da criança e o feedback que recebe dos que a rodeiam vão moldando a construção do amor próprio ao longo da infância. E situações traumáticas como a separação dos pais e o abandono ou afastamento de um dos progenitores podem ter um impacto muito negativo neste processo.
“A ideia que [a criança] constrói é: 'se o meu pai não quis ficar comigo, se o meu pai se foi embora, é porque eu não tenho valor suficiente. É impossível para uma criança pensar que a culpa é do pai ou ficar zangada com ele quando é pequenina", explica o especialista.
O narcisismo é uma máscara
A baixa autoestima gera sentimentos de inferioridade e, muitas vezes, uma idealização dos outros. Há casos, porém, em que se revela de uma forma totalmente oposta: pessoas que se sentem superiores, grandiosas ou especiais, que se exibem e diminuem aqueles que as rodeiam. São os chamados narcisistas, aparentemente muito seguros de si, mas que sofrem, inconscientemente, do mesmo problema de falta de amor-próprio.
“São indivíduos arrogantes que querem ser o centro das atenções, que exercem poder sobre outros de uma forma que os faz sentirem-se diminuídos e inferiorizados. Tem-se a ideia que estas pessoas têm uma grande autoconfiança e autoestima e por isso é que têm essa atitude perante os outros. Mas aquilo que se verifica, na prática, é que têm igualmente uma autoestima muito baixa. Simplesmente têm uma espécie de carapaça, usam inconscientemente determinados mecanismos de defesa, como a negação”, explica o especialista.
Neste episódio, o psiquiatra e psicoterapeuta explica este e outros mecanismos de defesa, como o recalcamento ou a chamada identificação projetiva, que usamos, sem nos apercebermos disso, para proteger o amor próprio e restaurá-lo quando é ferido.
Os fatores que potenciam ou fragilizam a autoestima ao longo da vida e o modo como a visão intrínseca que cada um tem de si próprio condiciona a forma como se sente, pensa, age e se comporta são outras das questões abordadas.
“Que voz é esta?” é um novo podcast do Expresso dedicado à saúde mental. Todas as semanas, as jornalistas Joana Pereira Bastos e Helena Bento vão dar voz a quem vive com ansiedade, depressão, fobia ou outros problemas de saúde mental, e ouvir os mais reputados especialistas nestas áreas. Sem estigma nem rodeios, vão falar de doenças e sintomas, tratamentos e terapias, mas também de prevenção e das melhores estratégias para promover o bem-estar psicológico. O podcast conta com o apoio científico de José Miguel Caldas de Almeida, psiquiatra e ex-coordenador nacional para a saúde mental.