A recuperação e a reabilitação das pessoas com esquizofrenia ou outra doença mental grave tornaram-se áreas prioritárias a partir da década de 70 do século XX, quando movimentos formados por pessoas com doença mental exigiram ter os mesmos direitos das restantes pessoas, incluindo o acesso a tratamentos de reabilitação. Nessa altura, surgiu o termo “recovery” - recuperação -, que se solidificou de tal forma que viria a corresponder a uma mudança total de paradigma no acompanhamento destas pessoas.
Já não importava apenas tratar os sintomas da doença, mas também garantir a recuperação pessoal dos doentes e criar condições para que conseguissem reorganizar a sua vida e ter objetivos, projetos e manter relações interpessoais. “Isto corresponde a uma atitude completamente diferente em relação a estas pessoas”, explica Joaquim Gago, psiquiatra e coordenador de programas da Unidade de Saúde Mental do Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental, em Oeiras, em entrevista ao podcast “Que Voz é Esta?”, dedicado à saúde mental.
Para que esse modelo seja efetivamente aplicado e traga benefícios às pessoas com doença mental grave, são necessárias evidentemente estruturas e recursos. E em Portugal ainda há algum trabalho a fazer a esse respeito, explica o médico, também membro da Coordenação Nacional das Políticas de Saúde Mental e professor de psiquiatria na Nova Medical School, em Lisboa. “Estamos a trabalhar com muita intensidade na criação de equipas comunitárias capazes de marcar a diferença e promover a recuperação. E temos conseguido fazê-lo, mas há dificuldades na contratação de recursos humanos.” As autorizações para a contratação em tempo útil demoram a chegar, diz, quando o prazo de execução desta medida, financiada pelo PRR (assim como várias outras da reforma da saúde mental que está em curso no país), é curto. “Deveria ser facilitada a contratação de recursos humanos”, defende.
O caso de Pedro, 55 anos e residente em Oeiras, mostra como é importante assegurar a recuperação das pessoas com esquizofrenia, respeitar os seus direitos e assegurar-lhes acompanhamento a vários níveis. Convidado a participar no episódio, conta que, aos 23 anos, teve o seu primeiro surto psicótico. Foi internado e diagnosticado com uma doença psicótica do espectro da esquizofrenia. Aceitou a medicação, trabalhou como desenhador técnico na construção civil - área em que se formou - e teve outros empregos. Juntou dinheiro e comprou uma casa. Ainda hoje é muito ativo e recentemente foi convidado a participar num projeto inovador em que pessoas com doença mental, em fase estável, dão apoio a outras com o mesmo diagnóstico, após o internamento. O projeto, de Manuela Silva, psiquiatra e investigadora do Hospital de Santa Maria, foi distinguido com o FLAD Science Award Mental Health 2022.
“Há dificuldades em lidar com doentes mentais graves, porque acredita-se que são violentos, diabólicos ou muito imprevisíveis. Mas não é verdade. A maior parte das pessoas com esquizofrenia não é nada violenta. Somos pessoas normalíssimas para lá da doença."
Apesar disso, ainda há dificuldades hoje em dia. “As pessoas não percebem que, para um doente com esquizofrenia, ir ao supermercado e conseguir comprar exatamente os produtos que estavam na lista de compras, pode ser uma grande conquista.” O estigma sobre a doença também persiste, diz. “Se perguntassem a uma pessoa se preferia ter um filho com uma deficiência física ou com esquizofrenia, penso que optaria pela primeira hipótese. Há dificuldades em lidar com doentes mentais graves, porque acredita-se que são violentos, diabólicos ou muito imprevisíveis. Mas não é verdade. A maior parte das pessoas com esquizofrenia não é nada violenta. Somos pessoas normalíssimas para lá da doença."
Pedro considera também que os doentes são “muitas vezes” tratados com “paternalismo”, o que resulta em “falta de confiança” por partes dos mesmos em relação às suas próprias capacidades. “Entram num estado de uma certa passividade. É importantíssimo que, se não conseguem trabalhar, como muitos não conseguem, pelo menos frequentem fóruns ocupacionais e hospitais de dia, ou participem num partido ou numa igreja ou noutra atividade. Sair de casa, falar com os vizinhos ou com outras pessoas, socializar, é fundamental.”
Neste episódio do podcast do Expresso sobre saúde mental, foram abordados assuntos como a recuperação, reabilitação e integração na sociedade das pessoas com esquizofrenia. Procurámos perceber quais são as principais necessidades destas pessoas e quais as respostas que estão efetivamente ao seu alcance, seja após um internamento, seja ao longo da vida.
“Que voz é esta?” é um novo podcast do Expresso dedicado à saúde mental. Todas as semanas, as jornalistas Joana Pereira Bastos e Helena Bento vão dar voz a quem vive com ansiedade, depressão, fobia ou outros problemas de saúde mental, e ouvir os mais reputados especialistas nestas áreas. Sem estigma nem rodeios, vão falar de doenças e sintomas, tratamentos e terapias, mas também de prevenção e das melhores estratégias para promover o bem-estar psicológico. O podcast conta com o apoio científico de José Miguel Caldas de Almeida, psiquiatra e ex-coordenador nacional para a saúde mental.