As relações com familiares, amigos e colegas sempre foram “complicadas” para Francisca Cunha. Hipersensível, levava a peito “quase todas as atitudes” que tinham para com ela, mesmo pequenas coisas que os outros nem se apercebiam ou tendiam a achar irrelevantes. Sentia-se permanentemente magoada e zangava-se com frequência, por vezes com agressividade. Vendo-a como uma pessoa difícil, conflituosa ou com mau feito, muitos acabaram por se afastar dela, agudizando no seu íntimo “o medo de abandono e rejeição” que sempre transportou dentro de si.
Uma situação de bullying no liceu e a morte de uma das amigas mais próximas agravaram o problema, tornando insuportável a sua dor interior. “O sofrimento que tenho é uma coisa de que eu não me consigo livrar. É como se levasse a mal tudo aquilo que me dizem, mesmo que não seja nada de especial”, conta no nono episódio do podcast “Que Voz é Esta?”.
Em permanente convulsão interior, chegou a ter medo de fazer mal aos outros, mas acabou por virar a agressão contra si própria, auto-infligindo-se cortes ou queimaduras, numa tentativa desesperada de aliviar a raiva e o sofrimento.
Sempre soube que algo de errado se passava com ela, mas não sabia o quê. Até que, há dois anos, recebeu o diagnóstico. "Quando descobri que tinha [perturbação de personalidade] borderline, percebi que, afinal, não era esquisita, não era má, não era louca. Era uma doença”, recorda.
Igualmente convidado neste episódio, João Carlos Melo, psiquiatra no Hospital Fernando da Fonseca [Amadora-Sintra] e autor da obra “Reféns das Próprias Emoções - Um retrato íntimo das pessoas com perturbação borderline”, explica que as pessoas que sofrem deste transtorno comportam-se muitas vezes com descontrolo, como se tivessem avariado o “termostato das emoções”.
Reagem “de uma forma agressiva, mais exacerbada”, sobretudo a críticas, possibilidade de rejeição ou abandono ou atitudes que sintam como injustas, e podem ter com frequência “ataques de raiva ou partir coisas”, ainda que algumas, como Francisca, tendam a "fazer mais mal a si próprias do que aos outros”.
“As pessoas com perturbação borderline têm um sofrimento insuportável. Um sofrimento diferente do tudo o que se possa imaginar. Não é tristeza, não é desespero, não é raiva, não é irritação. É tudo isso junto, de uma forma exacerbada”, descreve.
Alterações cognitivas, nomeadamente a nível da memória, e por vezes dificuldade em distinguir o que é real e o que não é são outros sintomas desta perturbação a que se dá o nome de “borderline” [na fronteira] por estar entre a neurose e a psicose.
“As pessoas com perturbação borderline têm um sofrimento insuportável. Um sofrimento diferente do tudo o que se possa imaginar. Não é tristeza, não é desespero, não é raiva, não é irritação. É tudo isso junto, de uma forma exacerbada."
Neste episódio, o psiquiatra, que dirige o hospital de dia do
Serviço de Psiquiatria do Hospital Amadora Sintra, explica o que são e como se caracterizam as perturbações da personalidade, como a perturbação borderline e outras, elenca as principais causas deste transtorno e fala das melhores respostas terapêuticas.
Há dois anos a ser acompanhada, Francisca Cunha garante que o tratamento ajuda muito. Fê-la descobrir que “é possível ver a vida de outra maneira", apesar do sofrimento. “Há coisas que melhorei e sei que posso vir a melhorar muito mais”, acredita.
“Que voz é esta?” é um novo podcast do Expresso dedicado à saúde mental. Todas as semanas, as jornalistas Joana Pereira Bastos e Helena Bento vão dar voz a quem vive com ansiedade, depressão, fobia ou outros problemas de saúde mental, e ouvir os mais reputados especialistas nestas áreas. Sem estigma nem rodeios, vão falar de doenças e sintomas, tratamentos e terapias, mas também de prevenção e das melhores estratégias para promover o bem-estar psicológico. O podcast conta com o apoio científico de José Miguel Caldas de Almeida, psiquiatra e ex-coordenador nacional para a saúde mental.