A anorexia é a doença psiquiátrica que mais mata. Entre 5% a 10% dos doentes morrem, uns devido a complicações médicas graves, por estarem subnutridos, outros porque se suicidam. A doença tem um impacto devastador na vida das pessoas. Afeta a saúde psicológica e física, e afeta as relações, fechando os doentes numa espécie de casulo, onde se debatem, totalmente solitários, com questões inimagináveis para os outros - é uma “prisão”.
Susana Llanos, 48 anos e natural de Lisboa, foi diagnosticada pela primeira vez com anorexia aos 13 anos, quando praticava ginástica de competição. Já em adulta, foi internada três vezes, mas só recentemente recuperou da doença.
No quarto episódio do podcast “Que Voz é Esta?”, dedicado às perturbações do comportamento alimentar, Susana descreve o impacto da doença na sua vida. “A minha rotina diária era acordar, pesar e comer o mínimo essencial: meia fatia de pão. Tinha pavor de beber água. Uma pessoa com anorexia pesa-se 599 vezes por dia. E beber um copo de água significava que, se me fosse pesar logo a seguir, o meu peso teria aumentado 100 gramas. Portanto, eu não bebia, eu molhava os lábios. O medo de ver os números na balança era aterrador. A minha cabeça não funcionava, não conseguia ler um livro, apenas estar em frente à televisão, mas sem conseguir prestar atenção. Tornei-me um vegetal. E afastei-me de toda a gente.”
Há vários fatores que podem explicar o aparecimento e o desenvolvimento da anorexia, desde a história familiar, traços de personalidade, fatores ambientais, psicológicos, sociais, biológicos e genéticos. “Há uma luta continuada e permanente contra o corpo, que é muito difícil de perceber”, diz Dulce Bouça, psiquiatra especializada nas doenças do comportamento alimentar, também convidada a participar no episódio.
Com mais de 30 anos de experiência nesta área, explica que as pessoas com anorexia têm uma “fragilidade, um défice” numa função cerebral que permite ao ser humano ter noção dos limites, formas e funcionamento do corpo. “Todos nós conseguimos mais ou menos detetar os sinais de alerta que o nosso corpo emite, sentir dor, etc., mas as doentes têm esta função num limiar muito baixo.”
Esta disfunção pode ser genética, “tendo a pessoa já nascido assim”, mas pode também resultar de “um trauma muito precoce na infância e situações de maus tratos ou abusos que não a deixaram reconciliar-se com o seu próprio corpo”.
“Pessoas com anorexia fazem dietas e exercício permanente porque estão continuamente à procura de perceber como funciona o seu corpo. Como não encontram respostas, fixam-se numa comparação com outros corpos e num número, o número do peso, a partir do qual concluem se estão bem ou não.”
“A minha rotina diária era acordar, pesar e comer o mínimo essencial: meia fatia de pão. Tinha pavor de beber água. Uma pessoa com anorexia pesa-se 599 vezes por dia. E beber um copo de água significava que, se me fosse pesar logo a seguir, o meu peso teria aumentado 100 gramas. Portanto, eu não bebia, eu molhava os lábios."
Apesar das dificuldades, a recuperação da doença é possível, garante a psiquiatra. Depois de vários anos a lidar com a doença, Susana Llanos diz que está finalmente tratada. Atribui a recuperação a uma mudança de atitude sua em relação ao problema. “Nós temos noção que estamos magras, mas não nos vemos como realmente estamos, que é esqueléticas. E a decisão de mudar tem de partir de nós. Há cerca de um ano, depois de me ter visto ao espelho, disse para mim mesma que isto tinha de acabar. E acabou. Já não tenho medo de comer."
Os casos de anorexia têm aumentado em todo o mundo nos últimos anos. Em Portugal, desconhece-se quantos têm a doença, mas Dulce Bouça garante que atende mais pessoas hoje em dia. “A pandemia levou a aumento significativo da doença entre os mais jovens.” As respostas que existem são insuficientes, tanto em termos de consultas, como internamento. “Muitos doentes em estado crítico têm de esperar quatro, cinco meses, para ter uma primeira consulta nos serviços públicos. E depois esperam semanas por uma vaga para internamento, porque as camas estão cheias.”
“Que voz é esta?” é um novo podcast do Expresso dedicado à saúde mental. Todas as semanas, as jornalistas Joana Pereira Bastos e Helena Bento vão dar voz a quem vive com ansiedade, depressão, fobia ou outros problemas de saúde mental, e ouvir os mais reputados especialistas nestas áreas. Sem estigma nem rodeios, vão falar de doenças e sintomas, tratamentos e terapias, mas também de prevenção e das melhores estratégias para promover o bem-estar psicológico. O podcast conta com o apoio científico de José Miguel Caldas de Almeida, psiquiatra e ex-coordenador nacional para a saúde mental.