Cartas dos leitores

Reflexões sobre seis anos de gestão na administração pública

Está na ordem do dia o debate sobre as funções do Estado e sobre as possibilidades de redução da despesa pública. Neste texto apresenta-se uma reflexão sobre a gestão da administração pública, à luz duma experiência pessoal de gestão no sector público e no sector privado.

Luís Meneses* (www.expresso.pt)

Seis anos de gestão na AP (Administração Pública), primeiro no Instituto de Segurança Social, depois no Instituto de Gestão Financeira e de Infra-estruturas da Justiça, após cerca de vinte anos de gestão no sector privado, em sectores e contextos diversos, nacionais e internacionais, suscitam-me algumas reflexões sobre a gestão da AP e sobre o muito que há a mudar, se quisermos, na realidade e não apenas no papel, melhorar a eficiência do Estado. O debate sobre as funções do Estado é sem dúvida relevante e merece a atenção que lhe tem sido dada. Mas não menos importante, num contexto em que a redução do défice público se tornou uma prioridade nacional, é a discussão sobre o que nos falta para que a "máquina" da administração pública seja mais eficiente, isto é, utilize menos recursos para obter os mesmos ou melhores resultados.

Este texto procura identificar os principais vícios de que padece a gestão da AP, à luz da minha experiência pessoal, que atravessa dois governos com diferente composição política.

Em primeiro lugar, a crença num poder "mágico" da legislação e, em geral, da palavra. Costuma dizer-se, e nunca é de mais lembrá-lo, que a realidade não se muda por decreto. Compreende-se que os governos se sintam tentados a legislar muito, sobretudo quando têm uma maioria confortável na Assembleia da República. Mas a administração pública, tal como qualquer organização, não muda apenas porque se aprova legislação "inteligente", baseada em ótimos princípios de gestão, como terão sido, porventura, as leis do PRACE, do SIADAP ou do PREMAC. Também não muda com discursos, mesmo brilhantes e inspirados, dos governantes. Mudará quando a "gestão da mudança" for levada a sério, como recomendam os manuais de gestão, com uma comunicação adequada, dirigida a todos os "stakeholders" e com o envolvimento e mobilização empenhada de todos os trabalhadores, começando pela cadeia de chefias.

Em segundo lugar, a falta de confiança e de responsabilização dos dirigentes. A AP está atafulhada de regras e de restrições, cujo objetivo será o de evitar os abusos, o despesismo e a corrupção, mas que restringem drasticamente a liberdade de ação dos seus agentes. Os fins últimos são louváveis, mas pelo caminho desresponsabilizam-se os dirigentes, criam-se obstáculos a uma resolução rápida dos problemas e prejudica-se muito a eficácia dos serviços. Com a agravante de que se trata dum círculo vicioso: quanto mais desresponsabilizados os dirigentes, menos iniciativa tomam e mais se conformam com a sua própria incapacidade para solucionar os problemas.

Em terceiro lugar, a falta de "sentido de urgência". Nas empresas, chegar ao mercado tarde de mais é quase sempre fatal, porque o espaço pode já estar ocupado. Na AP, o cliente/cidadão não tem outro remédio senão esperar, pelo que se adiam datas e projetos como se não houvesse consequências. É preciso criar a noção de que cumprir os objetivos no prazo fixado é essencial. Como dizem os anglo-saxónicos, "time is of the essence". Porque se o mundo não espera os cidadãos também não podem esperar.

Em quarto lugar, a inexperiência, quando não incompetência, na definição de objetivos. Dizem os manuais de gestão que os objetivos devem ser SMART, sendo o A de Ambicioso e o R de Realista. Definir objetivos realistas e ambiciosos é difícil para qualquer organização e exige não só um bom conhecimento da sua atividade e do ambiente em que opera, mas também uma cultura de exigência e de negociação. Se a primeira condição geralmente existe na AP, já a segunda e terceira são muito pouco frequentes. Em especial a negociação de objetivos em que se discutem em simultâneo objetivos e recursos, é rara, se não inexistente.

Em quinto lugar, a inexistência duma cultura de melhoria da eficiência. Um dos objetivos de qualquer organização deve ser o de melhorar a sua eficiência, ou seja, aumentar o rácio entre os resultados produzidos e os meios utilizados. A eficiência deve melhorar ano após ano, o que implica, em organizações de trabalho intensivo como a AP, que a produtividade do trabalho aumente. Na AP, não só o conceito de produtividade é, em geral, menosprezado, como muitas vezes se confundem os conceitos de eficiência e de eficácia. É necessário reabilitar a importância da eficiência, do aumento de produtividade, da redução de custos e do combate ao desperdício. Esta batalha nada tem a ver com os cortes cegos e transversais, tão fáceis de aplicar mas tão ineficazes para um aumento real da eficiência do Estado.

Em sexto lugar, a falta duma cultura de cooperação. O "efeito de silo", existente em muitas organizações com estrutura hierárquica, onde a cooperação entre pares ou o relacionamento "cliente-fornecedor" é substituída pela comunicação através da hierarquia, atrasa e arrasta desnecessariamente muitas decisões. Poder-se-á até questionar se não será mais uma manifestação da desconfiança entre pessoas e serviços, muitas vezes agravada com as mudanças de governo, quando o novo governo procura sistematicamente desdizer e diminuir o trabalho dos seus antecessores.

Em sétimo lugar, uma gestão orçamental ineficaz e obsoleta. O princípio de que em contabilidade pública só é considerada como despesa a despesa paga, e não os compromissos assumidos, como acontece na contabilidade das empresas, leva a que os dados da execução orçamental possam falsear a real situação da evolução da despesa, permitindo apresentar hoje resultados brilhantes e amanhã situações dramáticas, com a descoberta de buracos que resultam de compromissos não contabilizados anteriormente. É inacreditável que no século XXI, ano 2012, um país europeu seja gerido com uma "contabilidade de caixa", em que as dívidas não contam e só relevam as entradas e as saídas de dinheiro. Esta situação parece finalmente estar a ser alterada, mas teve um custo muito pesado para o país o facto de só agora, quinze anos depois de ter sido criado, o POCP estar a ser aplicado. O que será, mais uma vez, consequência do que acima se referiu sobre a tentação de legislar e a incapacidade de "gerir a mudança".

Em oitavo lugar, um conceito errado de mobilidade. Na cultura empresarial a mobilidade é valorizada e os programas de treino dos quadros com maior potencial utilizam a mobilidade interna como fator de desenvolvimento, das pessoas e da organização. Cada pessoa nova num serviço traz consigo um capital de experiência e de conhecimentos que de algum modo passa para esse serviço e para o seu património de conhecimentos. Em troca, recebe desse serviço os conhecimentos e a experiência aí acumulados. Por isso, nas empresas bem geridas, a mobilidade é, em geral, reservada aos melhores. Na AP, como se viu nos últimos anos, a mobilidade foi destinada aos "excedentes", quando não aos piores, e portanto foi considerada como um estigma. O resultado foi ter-se liquidado o que poderia ter sido um fator importantíssimo de desenvolvimento das pessoas e de revitalização dos serviços.

Em nono lugar, a desconfiança face ao sector privado. Embora se enalteça o papel do sector privado na economia, desconfia-se em geral da sua honestidade, talvez devido aos casos pontuais de clientelismo e da corrupção. Como se o objetivo do lucro fosse imoral ou conduzisse à imoralidade, é frequente o ceticismo em relação à ética das empresas e ao conceito de "responsabilidade social". São raras as relações de parceria com o sector privado, que defendam o interesse público e que sejam produtivas e transparentes, em especial no outsourcing de atividades. Essa desconfiança provoca também, como efeito de espelho, uma desconfiança da "sociedade civil" em relação ao Estado.

Em décimo e último lugar, a falta de competências de liderança. No conceito de Lao Tse, segundo o qual um líder é bom quando as pessoas mal notam que existe, não tão bom quando apenas lhe obedecem e o elogiam, mau quando o desprezam. De um bom líder, quando o trabalho está feito, os liderados dirão "fomos nós que fizemos isto". Este tipo de liderança é praticamente existente na AP, onde em geral os líderes se dividem entre os ausentes, que endossam todas as responsabilidades para os seus superiores hierárquicos, e os autoritários, que decidem sem consulta nem envolvimento dos seus subordinados.

Para não terminar num tom sombrio, devo referir o que de mais importante está bem na AP, permitindo que, apesar deste contexto, as organizações da AP sobrevivam e, em muitos casos, melhorem o seu desempenho. E que é, segundo creio, o espírito de missão e a noção de serviço público que existe em muitos funcionários públicos, sobretudo nos que têm contacto direto com os cidadãos. Conheci, nestes seis anos, muitos com uma dedicação ao trabalho inexcedível, bem para além do que encontrei no sector privado. Embora, por vezes, sem a consciência de que trabalhar muito não é tão importante como trabalhar bem. Encontrei também muitos trabalhadores desinteressados, desmotivados, com muito baixa produtividade. É necessário estimular e premiar os primeiros e mobilizar, reconverter ou dispensar os segundos. O que não se faz com salários reduzidos igualmente para todos e prémios e promoções adiadas "sine dia".

Uma administração pública mais eficiente, com melhores resultados e menos custos, é possível. Mas exige muita determinação e trabalho, muito trabalho.

 

*Ex-Presidente do IGFIJ, I.P

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