Foi quando percebi efetivamente que Angela Merkel nunca aceitará a criação de um sistema de emissão de Eurobonds que finalmente consegui dar um nome ao que venho sentindo. Receio que a Europa de hoje está refém do "duplopensar"! Os mais novos ou menos dados às leituras da obra de Orwell desconhecerão, por certo, o conceito, contudo posso imaginar que muitos de vós, leitores, estão agora mesmo a recuperar pouco a pouco imagens, formadas por várias frases geniais, saídas da pena de George Orwell na sua obra prima "Mil Novecentos e Oitenta e Quatro". Estarão até, talvez, a formular já objeções à primeira linha deste texto.
Estou, no entanto, bastante seguro de que hoje, o nosso universo político e financeiro está votado aos estranhos conceitos escritos em "Novilíngua". Cumpre explicar aqui o conceito de "duplopensar", para melhor exprimir o raciocínio. "Duplopensar" é a faculdade de sustentar duas opiniões contraditórias simultaneamente, de albergar duas crenças contrárias ao mesmo tempo na nossa mente. Saber que uma coisa é verdade mas desconsiderar essa verdade e verdadeiramente acreditar que essa verdade é, afinal, uma mentira. Em poucas palavras, significa controlo da realidade!
Esta afirmação foi maturada. Não pensem que foi algo que me invadiu o espírito durante a noite enquanto esperava que o sono chegasse, que surgiu de rompante numa manhã gelada enquanto esperava pelo conforto do café quente ou que me assaltou durante as intermitências da azáfama do trabalho. Não surgiu em nenhum desses momentos, apesar de ter estado presente em todos! Foi algo que cresceu, que foi maturando no meu espírito. Primeiro algo muito difuso e inominado, depois um pouco mais claro à medida que o tempo ia passando. E finalmente como uma verdade absoluta. Liberto-me do "duplopensar" e olho apenas a verdade. Senão vejamos:
O colapso da zona euro está iminente! A não ser que aconteça um milagre inexplicável, nem a Grécia, nem Portugal, Espanha, Irlanda ou Itália poderão manter o seu lugar enquanto membros da zona euro. O caso é óbvio: os países altamente endividados não suportarão juros muito pesados, pois as suas dívidas tornar-se-ão insustentáveis. Não suportando as suas dívidas, nunca poderão criar as condições necessárias para recuperar a sua credibilidade perante os investidores e se esta credibilidade nunca vier a ser recuperada então este será um problema sem solução possível.
Apesar de ser apenas um passo para a resolução do problema e não a solução total do mesmo, é imprescindível tornar a União Europeia numa única realidade financeira. Para tal, é necessário criar um mercado com liquidez (alguns economistas avançam com um número superior a 8 biliões de Euros, o que tornaria este mercado no segundo maior a nível Mundial), através da emissão de Eurobonds, um mercado muito mais apetecível aos investidores. Outro benefício óbvio resultante da emissão de Eurobonds seria a redução das taxas de juro para a maior parte dos países da União Europeia, exceto para a Alemanha, que veria a sua taxa de juro um pouco aumentada. E este é o principal motivo pelo qual a Alemanha, através das declarações do seu Ministro das Finanças, Wolfgang Schäuble, rejeitou por completo os Eurobonds para financiar os empréstimos dos países da zona euro, alegando que para que isso acontecesse, seriam necessárias "alterações fundamentais no Tratado Europeu". Também o Ministro da Economia alemã, Philipp Rösler, mostrou-se contra os Eurobonds dizendo que "numa Europa onde cada Estado-Membro deve ser responsável, acredito que uma obrigação comum para o Euro é o caminho errado". Os Alemães conseguem ver a verdade, percebem que será impossível continuar no mesmo caminho, contudo escolhem desconsiderar esta verdade recorrendo ao "duplopensar". Só assim se explicam as declarações de Rösler e de Schäuble, bem como a posição adotada pela Alemanha em todo este processo. Nem mesmo o argumento de que a emissão de Eurobonds iria remover as pressões do mercado sobre os governos para que estes reduzissem o seu défice é aceitável. Tem esta pressão funcionado? Como está a Grécia? Melhorou? Não!
Fechando os olhos à verdade, a Alemanha, que pretende criar uma União Europeia à sua imagem, corre o risco de tornar a União Europeia mais parecida com a Grécia à medida que o tempo se vai arrastando. Tal como nos diz o Nobel da Economia de 2001, Joseph Stiglitz, "se a zona euro decidir que a única forma de continuar é através da emissão de Eurobonds, então a Alemanha tem de sair da moeda única". E continua dizendo que os Eurobonds "são hoje uma realidade, mas de uma forma muito pouco transparente". O que Stiglitz quer dizer é que hoje os governos europeus são financiados pelos seus bancos, bancos esses que depois vão utilizar títulos de dívida pública para se financiarem junto do Banco Central Europeu.
Mas se existe já este mecanismo difuso que se assemelha à emissão de Eurobonds, por que recua a Alemanha? Se percebem que esta é uma saída viável e que a cada momento que passa a situação se deteriora, por que não mostram abertura para negociar? A explicação é simples e com ela voltamos ao início deste texto: quando votada ao "duplopensar", uma pessoa já não diz apenas o oposto do que pensa, mas também pensa em termos do que é oposto à verdade. Não será então isto que a Alemanha tem feito?
*Advogado Estagiário no Departamento de Mercados Financeiros na SRS Advogados
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