Ontem tive mais uma confirmação, tão prática quanto acidental, de algo que venho observando e defendendo há muito tempo. Quem me lê há mais tempo sabe o que penso da portalite - um fenómeno tipicamente português, que praticamente não tem expressão fora do universo de língua portuguesa (também no Brasil decorreu algo parecido, ainda que com protagonistas de origens diferentes).
A portalite decorreu no final da década de 90 e consistiu na entrega, pelas grandes marcas de informação e entretenimento, do fruto do seu trabalho a terceiros, os "portais". O fruto do trabalho do momento, mas também o fruto do trabalho de décadas - este a troco de nada, rien, nicles, zero: a transferência do valor das marcas de media ocorreu simplesmente, sem que ninguém pensasse nisso, sem que ninguém lhe atribuísse um valor durante os negócios e as conversações que rodearam a portalite.
A "justificação" para essas transferências de valor, bem como para o progressivo esvaziamento das marcas e o desaparecimento do mapa mental das novas gerações, decorreu de raciocínios funestos que pressupunham duas cegueiras - ou, vá lá, medos.
Uma, a "incerteza" relativamente ao futuro da Internet enquanto plataforma criativa, sala de espectáculos de escala global e rede de distribuição privilegiada dos produtos gerados pelas indústrias culturais. Essa "incerteza" não existia fora da cabeça dos principais envolvidos (os interessados e os levados) nessa espécie de conspiração contra as marcas de media.
A outra, os custos da tecnologia, os directos (material) e os indirectos (aquisição de competências), que seriam supostamente incomportáveis para as "pequenas" empresas de media, quando confrontadas com os emergentes "gigantes" tecnológicos.
De nada serviu, na altura, proclamar que a Internet era o Toyota dos anos 90, vinha para ficar, e que não apenas a tecnologia era barata, como tenderia a baixar de preço drasticamente.
Os jornais, rádios e televisões viram as suas individualidades morrer por afogamento indistinto nos "portais"; marcas fortíssimas serviram para vender o novo negócio do acesso a essa plataforma comum de edição e distribuição, a troco de um bocado de espaço em disco. Literalmente, foi isto.
Com o tempo, as marcas de media diluiram-se, engrossando as novas marcas dos portais.
Ontem fui de viagem. Quis ler notícias no meu iPhone e usei as aplicações noticiosas do Telegraph e do El País. São competentes. São marcas de informação em que confio. Por isso, aliás, me dei antes ao trabalho de as puxar e instalar.
Mas quis ler também as notícias da política local (temos três campanhas eleitorais, lembram-se...). Não conheço nenhuma aplicação iPhone de um jornal, rádio ou televisão portuguesa. Logo, perguntei à minha rede de especialistas se conheciam alguma: "Bom dia #madrugadores.conheceis alguma app para iphone de jornais pt? Estou "condenado" ao El País ..." (link)
Vieram várias respostas. Todas diziam o mesmo, mas essa não é a questão. A questão é que nenhuma das respostas referiu uma marca de media, todas apontaram portais.
Eu pedi um jornal, apontaram-me uma montra de produtos, entre os quais alguns de informação.
Pior: quando eu respondi que não era aquilo que tinha perguntado, a maioria ficou perplexa. Para ela, a transferência já se deu. A informação não está nos sites A ou B, mas no portal P. A maioria não compreendeu que eu, quando procuro informação, não confio nas escolhas de um portal nem nos critérios que as regem. Confio num dos jornais de um leque de marcas de jornalismo que ao longo dos tempos estiveram ao meu alcance sempre que precisei de ser informado, e o fizeram repetidamente com competência.
É este o resultado de dez anos a trocar informação de alta qualidade por espaço em disco e a deixar sangrar a marca.
A indústria dos media está em crise e essa crise não decorre somente de uma mudança de paradigma. Em Portugal e em pouco mais países há também essa decisão de trocar trabalho de especialista por espaço em disco e sacudir a marca do ombro. E responsáveis por ela.
Hoje até já aqueles responsáveis devem ter descoberto que o espaço em disco é barato, a tecnologia está ao preço da chuva e que, numa rede, o verdadeiro valor não está nos fios mas nos nós. Nas pessoas. Daí, uma pergunta aos especialistas: serão as marcas de media capazes de reverter a situação? Ou estará a transferência do valor das marcas de media para os portais já para lá do ponto de retorno? Não é que me importe de ter de ficar a ler o El País. Até porque o mais provável, nesse caso, seria eu próprio programar uma aplicação para iPhone para ler o Expresso e o Público quando venho de viagem. Ei, boa ideia, vou agora mesmo começar a tratar disso.
Paulo Querido, jornalista