O mundo dos outros

O povo é quem mais ordena

José Cutileiro (www.expresso.pt)

E tem ajudado a evitar grandes sarilhos nos lugares onde o seu poder se instalou e a sair-se menos mal dos sarilhos que foi incapaz de evitar. Esses lugares são as democracias parlamentares: europeias, norte-americanas (Canadá e EUA), australiana, neozelandesa, indiana, japonesa; de há menos tempo para cá também de alguns outros países asiáticos e, com intermitências, de quase toda a América Latina e de vastas regiões de África.

São lugares que por razões variadas acabaram por preferir resolver pendências a bem do que a mal - é melhor discutir do que andar à pancada - quer dentro das fronteiras de cada um quer de Estado para Estado. Chegaram lá pela prática. Como toda a gente sabe a chamada 'comunidade internacional' não existe. O mundo é uma selva onde a convivência pacífica não tem leis gerais de aplicação obrigatória. A Organização das Nações Unidas, criada em 1945 pelos vencedores da II Guerra Mundial que na euforia da vitória deram rédea solta ao seu idealismo, vinha cheia de boas intenções, mas estas foram depressa travadas por uma divisão no topo (os membros permanentes do Conselho de Segurança) entre as três democracias vencedoras: Estados Unidos, Reino Unido e França e as duas ditaduras vencedoras: União Soviética e China (esta, depois de Taiwan ter sido enxotada e substituída pelo poder continental comunista).

Quando sob Deng Xiaoping a China optou pelo modo capitalista de produção julgou-se que iria rifar a máquina repressiva do comunismo mas só o fez onde tal não diminuísse o poder do Partido. Quando Ieltsin dissolveu de cima para baixo a União Soviética e promoveu eleições livres na Rússia, julgou-se que a liberdade (as boas liberdades burguesas da Revolução Francesa) se iria lá instalar mas foi sol de pouca dura e há repressão crescente de um povo desmoralizado. (Durante a recente vaga de calor uma média de 40 pessoas por dia morreram afogadas em lagos e canais de Moscovo, quase todas com altas taxas de alcoolemia). Ditaduras e tentações ditatoriais são visíveis em outros lugares, da Guiné Equatorial à Venezuela, quase todos recipientes de um presente envenenado quando dado a países sem arcaboiço cívico para o receberem: petróleo com fartura.

Nas democracias parlamentares, pelo contrário, as coisas têm vindo a melhorar. Há sinais de retoma na Europa, de durabilidade ainda incerta mas animadores. Países em dificuldade arranjam o dinheiro que querem a juros razoáveis nos mercados. Escrevo antes de se saberem os resultados dos testes aos bancos mas os entendidos esperam-nos satisfatórios. A crise exacerba desigualdades económicas e ressentimento delas mas se a avó Berta ("Sempre houve ricos e pobres") voltasse agora, espantar-se-ia de não ver gente descalça nem políticos queridos do povo por quererem ir bater nos vizinhos. Vem aí mais um Agosto em paz na Europa (este fará sessenta e cinco seguidos) e à democracia parlamentar em grande parte se ficará a dever o chorrilho.

Texto publicado na edição do Expresso de 24 de julho de 2010

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José Cutileiro escreve de acordo com a antiga ortografia