Luís Fernando Veríssimo

Suflé de queijo

Ele se desculpou para ir até à cozinha ver qual era a situação do suflé. Ela perguntou se podia ir junto. No caminho, ele mostrou onde era o seu quarto. Mostrou a sua cama (...) Ela Sugeriu que pulassem o suflé. Ele riu, tentado, mas não concordou.

Luís Fernando Veríssimo (www.expresso.pt)

Ele a recebeu na porta do apartamento. Ela tirou o casaco. Ele ficou segurando o casaco dela, esperando. Ela disse:

- Não vou tirar mais nada.

Mas acrescentou:

- Por enquanto...

Os dois sorriram. "Perfeito", pensou ele.

Se alguém tivesse escrito aquele começo, não poderia ser melhor. Restava saber como seria o resto do script.

Ele - Vá entrando, vá entrando.

Ela - Que apartamento lindo!

Ele - Modestamente...

Ela - Foi você mesmo que decorou?

Ele - Fui.

Ela - Lindo.

Ele - Agora ficou.

Ela - Como assim?

Ele - Eu sabia que estava faltando alguma coisa na decoração... Era você.

Ela não sorriu. "Meu Deus", pensou ele, "ela não entendeu."

Tentou de novo:

- Estava faltando a sua beleza para completar a decoração.

- Ah. Isso quer dizer que você quer que eu fique para sempre?

- Para sempre... e mais um pouco.

"Boa, boa", pensou ele. "Ela está sorrindo. Ela está gostando. Ela está no papo."

- Quer dizer que eu vou conhecer o seu famoso suflé de queijo?

- Espero que ele não a dececione. Sabe como é suflé.

- Me disseram que o seu nunca falha.

- Bom, até hoje ninguém se queixou...

Duplo sentido, mas com classe... O script continuava funcionando.

- Posso lhe oferecer uma panhe de chamtaça? Quer dizer, uma taça de champanhe?

"Calma", pensou ele. "Não vá estragar tudo com o seu nervosismo. Sofisticação. Homem do mundo. Cuidado ao abrir o champanhe. Uma rolha ricocheteando pela sala pode pôr tudo a..."

- Esses canapés, foi você quem fez?

- Fui.

- Mmmmm.

- Obrigado.

Ele se desculpou para ir até à cozinha ver qual era a situação do suflé. Ela perguntou se podia ir junto. No caminho, ele mostrou onde era o seu quarto. Mostrou a sua cama, de casal (ela: "Que prático.") Na cozinha, falando no ouvido dele, ela sugeriu que pulassem o suflé. Ele riu, tentado, mas não concordou. Tinha orgulho no seu suflé. Queria saber a opinião dela do seu suflé infalível. E a vaidade culinária falou, desgraçadamente, mais alto. Foi esse o momento em que - pensando no acontecido, mais tarde e mais calmo - ele lamentou a falta de um bom roteirista.

O suflé ficou pronto, levaram o suflé para a mesa, ela deu a primeira garfada - e queimou a língua. Chegou a dar um salto para trás, fazendo "Uol!" e quase caindo da cadeira. Bebeu um longo sorvo de champanhe. Abanou a boca com as mãos. E gritou para ele:

- Você não me avisou que estava quente!

- Desculpe, eu...

- Seu cretino!

"Epa", pensou ele. "Cretino não."

- Quem é que não sabe que suflé é quente? Você não viu ele sair fumegante do forno?

- Você podia ter me avisado!

O jantar terminou ali. Ela levantou-se da mesa, vestiu o seu casaco e saiu do apartamento batendo com a porta. Ele ficou pensando que ela poderia ter sido mais compreensiva, mas que era melhor assim. Com a língua queimada, ela não iria apreciar o seu suflé, mesmo.

"Roteirista", pensou ele. "Decididamente, faltou roteirista."

Texto publicado na revista Actual  de 28 de agosto de 2010